Entre o documentário e o ensaio visual, o vídeo “O lodo ensina a dançar” procura identificar as dinâmicas existentes entre os personagens que habitam hoje os moinhos desativados do Leça e as águas daquele que foi o rio mais poluído da Europa.
Adaptando as ruínas destes antigos engenhos — redutos arquitectónicos que conservam a memória local da profícua produção de cereais — e criando ferramentas, estratégias e espaços informais, o “Guardião limpador de plástico” ou o “Hortelão produtor de alimento” tentam subsistir nas margens às súbitas subidas do rio indomável. Serão as suas derrotas e vitórias que determinarão a verdadeira recuperação do rio Leça e da nossa própria humanidade.
Situated between documentary and visual essay, the video “The Mud Teaches You to Dance” seeks to identify the dynamics between the characters who today inhabit the deactivated mills of the Leça and the waters of what was once the most polluted river in Europe.
By adapting the ruins of these former mills — architectural strongholds that preserve the local memory of a once-prolific cereal production — and by creating tools, strategies, and informal spaces, figures such as the “Plastic-Cleaning Guardian” or the “Food-Growing Gardener” attempt to subsist on the riverbanks, contending with the sudden rises of the untamed river. Their defeats and victories will determine the true recovery of the Leça River — and of our own humanity.
"O Lodo Ensina a Dançar", 2023.
Vídeo 4K, som, 60’09’’
Maia
Há uma dança poética no ato de limpar e de cultivar, um movimento mais ou menos certo, ritmado, repetitivo, inconsciente, entre a ação do corpo que se adapta ao espaço e o gesto das mãos que purificam e semeiam, impondo a ordem. A limpeza e o cultivo como performances improvisadas expressam a vontade explícita de organizar o caos, através da qual o Homem atenua também a dor da sua própria mortalidade: arrumar, ordenar, regrar, estruturar, lavar, arejar, sanear.
∴
No vídeo que se apresenta, a matéria da limpeza e do cultivo é o rio Leça; os intérpretes que executam essa dança, o Guardião limpador de plástico e o Hortelão produtor de alimento.
Nas margens daquele que foi considerado o rio mais poluído da Europa durante a década de 90 e onde, ainda hoje (2023), abundam mais plásticos que peixes, encontramos estes dois bailarinos que, entre muitos outros, executam as suas danças a partir das ruínas que habitam. São atos individuais de cuidado, de restauro e despoluição, de criação de ordem na desordem, mas sobretudo são formas de protesto contra o desleixo do rio e o desaproveitamento da terra. As performances têm lugar em zonas lodosas e em moinhos abandonados [1] que, graças às mãos e ao esforço destes dois bailarinos, foram transformados em espaços onde se evoca a vitalidade perdida da água, se redefine a ideia de propriedade e se afirma a autonomia alimentar e o direito ao sustento.
∴
Como cuidador que é, o Guardião limpador de plástico limpa o rio todos os dias, removendo plásticos de forma compulsiva ao lado da sua casa, junto aos “Moinhos da Ponte da Rua Pinto” [2]. Entende o Leça como uma extensão da sua habitação e, como tal, passeia com os seus chinelos de quarto pelas pedras escorregadias e pelos moinhos das margens, em busca de resíduos.
Com a exceção da nascente, no monte Córdova em Santo Tirso, não há local mais limpo no Leça (a obsessão pela limpeza é, por si só, uma forma de energia). Junto ao local que entende ser da sua responsabilidade, muito pouco lixo segue para jusante: plásticos, ferros, madeiras, vidros, sacos de areia ou tijolos. Aqui tudo é parado, selecionado e retirado da água — tanto da superfície como da lama do fundo — através de ferramentas de metal compridas criadas especialmente para o ato de apanhar. São pequenos utensílios ou ganchos que lhe expandem os membros e permitem a dança da limpeza de forma mais fluida. As pedras junto à ponte estão gastas, não só pela violência da queda da água, mas também pela cerda da vassoura do Guardião, que nelas impõe o seu baile de polimento, asseio e soberania. O rio é a sua casa, e há que mantê-la limpa.
A nostalgia causada pelas lembranças de um Leça salubre é outra força motriz que justifica esta ininterrupta energia para a higienização do rio. A nostalgia dos tempos em que as suas margens eram vividas, animadas pela pesca e pelas hortas, pelas lavandeiras que vinham do Porto lavar e corar roupa nas pedras, por passeios em barcos de recreio, mas também por barracas coloridas, banhistas, mergulhos e escolas de natação. Muitos guardam memórias de infância do Leça como estância balnear, para onde artistas e intelectuais do Porto se deslocavam nos meses mais quentes, para usufruir das belas praias fluviais, escolhidas em detrimento das praias de mar de Matosinhos. Através da sua dança, o Guardião procura dissipar o passado de contaminação ligado à indústria têxtil (às tinturarias e estamparias) e à indústria da carne (de vacarias e matadouros), mas também o tempo não tão distante das descargas diretas de esgotos e ETARs. São tentativas que exprimem a visão esperançosa de um homem, aqui e agora, contra o descuido desmesurado de muitos, por dezenas de anos e ao longo de 44,8 km de rio.
∴
Por sua vez, o Hortelão produtor de alimento ocupa as ruínas do Moinho da Quinta da Azenha e da capela adjacente, na margem esquerda do Leça, adaptando-as para cultivo e criação de galinhas. Inventa novos espaços, ferramentas e estruturas onde por muito tempo nada existiu: os buracos das antigas mós são agora sementeiras; das verguinhas enferrujadas para abrir comportas e dar mais velocidade à mó fabricou portas e suportes para os galinheiros; das bancadas de xisto antigas fez a zona para depenar os frangos e de uma mó vermelha partida, a base da fogueira para cozê-los. Aqui, como outrora, tudo é reaproveitado e transformado, numa lógica de desperdício zero fruto do engenho e da necessidade, tal qual o sabugueiro, que se adapta aos escombros da capela e cresce na sombra das pedras instáveis, fixadas pela trepadeira que impede o seu desmoronamento. Neste lugar ermo e severo, onde se plantam alfaces e pencas que o rio teima em levar, despontam também umbigos-de-vénus, urtigas e cimbalárias. Esta é a vegetação espontânea comestível que o Hortelão produtor de alimento ignorava existir e que constata, com estranheza, poder ser um sustento frutífero, sem esforço e sem cultivo.
Este inverno, como em todos os outros, “o rio indomável” [3] subiu abruptamente e destruiu os galinheiros, levou consigo as galinhas e os utensílios, inutilizou as sementes e as culturas. Mas tudo será reconstruído pelo Hortelão, tal como todos os outros anos. Desta forma, ele reafirma o seu solo sagrado e o seu protesto contra o rio, cujo abandono continuado põe em causa a sua segurança e autonomia alimentares.
∴
É nesta resistência à água, à poluição, ao inesperado e à desordem que surge o gesto rebelde prometido pela limpeza e pelo semear. São estes corpos, animados pela energia da memória e da fome, que dançam fluidos no lodo, junto aos moinhos de água do Leça. São estes corpos que ensaiam uma concepção diferente de ocupação de solo, sem propriedade, que recuperam a ideia de um espaço gerido coletivamente, de um rio como bem comum.
É na voz deles e nas suas vivências nestes lugares que poderemos encontrar soluções para alguns dos problemas mais prementes da atualidade e serão as suas derrotas e vitórias que determinarão a verdadeira recuperação do rio Leça e da nossa própria humanidade.
Teaser 1
Teaser 2
ANO YEAR · 2023
autores authors · Alexandre Delmar + Maria Ruivo (a recoletora)
texto text · Alexandre Delmar + Maria Ruivo (a recoletora)
ENCOMENDA E CURADORIA Commission & Curation · MAM — Mês da Arquitetura da Maia / Atelier Summary
Organização ORGANIZATION · Câmara Municipal da Maia
LOCAL LOCATION · MAIA, RIO LEÇA
AGRADECIMENTOS Acknowledgements · André Tomé Ribeiro, Eduardo Ferreira, Manuel Silva, Corredor do Rio Leça — Associação de Municípios
Entre o documentário e o ensaio visual, o vídeo “O lodo ensina a dançar” procura identificar as dinâmicas existentes entre os personagens que habitam hoje os moinhos desativados do Leça e as águas daquele que foi o rio mais poluído da Europa.
Adaptando as ruínas destes antigos engenhos — redutos arquitectónicos que conservam a memória local da profícua produção de cereais — e criando ferramentas, estratégias e espaços informais, o “Guardião limpador de plástico” ou o “Hortelão produtor de alimento” tentam subsistir nas margens às súbitas subidas do rio indomável. Serão as suas derrotas e vitórias que determinarão a verdadeira recuperação do rio Leça e da nossa própria humanidade.
"O Lodo Ensina a Dançar", 2023.
Vídeo 4K, som, 60’09’’
Maia
Há uma dança poética no ato de limpar e de cultivar, um movimento mais ou menos certo, ritmado, repetitivo, inconsciente, entre a ação do corpo que se adapta ao espaço e o gesto das mãos que purificam e semeiam, impondo a ordem. A limpeza e o cultivo como performances improvisadas expressam a vontade explícita de organizar o caos, através da qual o Homem atenua também a dor da sua própria mortalidade: arrumar, ordenar, regrar, estruturar, lavar, arejar, sanear.
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No vídeo que se apresenta, a matéria da limpeza e do cultivo é o rio Leça; os intérpretes que executam essa dança, o Guardião limpador de plástico e o Hortelão produtor de alimento.
Nas margens daquele que foi considerado o rio mais poluído da Europa durante a década de 90 e onde, ainda hoje (2023), abundam mais plásticos que peixes, encontramos estes dois bailarinos que, entre muitos outros, executam as suas danças a partir das ruínas que habitam. São atos individuais de cuidado, de restauro e despoluição, de criação de ordem na desordem, mas sobretudo são formas de protesto contra o desleixo do rio e o desaproveitamento da terra. As performances têm lugar em zonas lodosas e em moinhos abandonados [1] que, graças às mãos e ao esforço destes dois bailarinos, foram transformados em espaços onde se evoca a vitalidade perdida da água, se redefine a ideia de propriedade e se afirma a autonomia alimentar e o direito ao sustento.
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Como cuidador que é, o Guardião limpador de plástico limpa o rio todos os dias, removendo plásticos de forma compulsiva ao lado da sua casa, junto aos “Moinhos da Ponte da Rua Pinto” [2]. Entende o Leça como uma extensão da sua habitação e, como tal, passeia com os seus chinelos de quarto pelas pedras escorregadias e pelos moinhos das margens, em busca de resíduos.
Com a exceção da nascente, no monte Córdova em Santo Tirso, não há local mais limpo no Leça (a obsessão pela limpeza é, por si só, uma forma de energia). Junto ao local que entende ser da sua responsabilidade, muito pouco lixo segue para jusante: plásticos, ferros, madeiras, vidros, sacos de areia ou tijolos. Aqui tudo é parado, selecionado e retirado da água — tanto da superfície como da lama do fundo — através de ferramentas de metal compridas criadas especialmente para o ato de apanhar. São pequenos utensílios ou ganchos que lhe expandem os membros e permitem a dança da limpeza de forma mais fluida. As pedras junto à ponte estão gastas, não só pela violência da queda da água, mas também pela cerda da vassoura do Guardião, que nelas impõe o seu baile de polimento, asseio e soberania. O rio é a sua casa, e há que mantê-la limpa.
A nostalgia causada pelas lembranças de um Leça salubre é outra força motriz que justifica esta ininterrupta energia para a higienização do rio. A nostalgia dos tempos em que as suas margens eram vividas, animadas pela pesca e pelas hortas, pelas lavandeiras que vinham do Porto lavar e corar roupa nas pedras, por passeios em barcos de recreio, mas também por barracas coloridas, banhistas, mergulhos e escolas de natação. Muitos guardam memórias de infância do Leça como estância balnear, para onde artistas e intelectuais do Porto se deslocavam nos meses mais quentes, para usufruir das belas praias fluviais, escolhidas em detrimento das praias de mar de Matosinhos. Através da sua dança, o Guardião procura dissipar o passado de contaminação ligado à indústria têxtil (às tinturarias e estamparias) e à indústria da carne (de vacarias e matadouros), mas também o tempo não tão distante das descargas diretas de esgotos e ETARs. São tentativas que exprimem a visão esperançosa de um homem, aqui e agora, contra o descuido desmesurado de muitos, por dezenas de anos e ao longo de 44,8 km de rio.
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Por sua vez, o Hortelão produtor de alimento ocupa as ruínas do Moinho da Quinta da Azenha e da capela adjacente, na margem esquerda do Leça, adaptando-as para cultivo e criação de galinhas. Inventa novos espaços, ferramentas e estruturas onde por muito tempo nada existiu: os buracos das antigas mós são agora sementeiras; das verguinhas enferrujadas para abrir comportas e dar mais velocidade à mó fabricou portas e suportes para os galinheiros; das bancadas de xisto antigas fez a zona para depenar os frangos e de uma mó vermelha partida, a base da fogueira para cozê-los. Aqui, como outrora, tudo é reaproveitado e transformado, numa lógica de desperdício zero fruto do engenho e da necessidade, tal qual o sabugueiro, que se adapta aos escombros da capela e cresce na sombra das pedras instáveis, fixadas pela trepadeira que impede o seu desmoronamento. Neste lugar ermo e severo, onde se plantam alfaces e pencas que o rio teima em levar, despontam também umbigos-de-vénus, urtigas e cimbalárias. Esta é a vegetação espontânea comestível que o Hortelão produtor de alimento ignorava existir e que constata, com estranheza, poder ser um sustento frutífero, sem esforço e sem cultivo.
Este inverno, como em todos os outros, “o rio indomável” [3] subiu abruptamente e destruiu os galinheiros, levou consigo as galinhas e os utensílios, inutilizou as sementes e as culturas. Mas tudo será reconstruído pelo Hortelão, tal como todos os outros anos. Desta forma, ele reafirma o seu solo sagrado e o seu protesto contra o rio, cujo abandono continuado põe em causa a sua segurança e autonomia alimentares.
∴
É nesta resistência à água, à poluição, ao inesperado e à desordem que surge o gesto rebelde prometido pela limpeza e pelo semear. São estes corpos, animados pela energia da memória e da fome, que dançam fluidos no lodo, junto aos moinhos de água do Leça. São estes corpos que ensaiam uma concepção diferente de ocupação de solo, sem propriedade, que recuperam a ideia de um espaço gerido coletivamente, de um rio como bem comum.
É na voz deles e nas suas vivências nestes lugares que poderemos encontrar soluções para alguns dos problemas mais prementes da atualidade e serão as suas derrotas e vitórias que determinarão a verdadeira recuperação do rio Leça e da nossa própria humanidade.
Teaser 1
Teaser 2
ANO YEAR · 2023
autores authors · Alexandre Delmar + Maria Ruivo (a recoletora)
texto text · Alexandre Delmar + Maria Ruivo (a recoletora)
ENCOMENDA E CURADORIA Commission & Curation · MAM — Mês da Arquitetura da Maia / Atelier Summary
Organização ORGANIZATION · Câmara Municipal da Maia
LOCAL LOCATION · MAIA, RIO LEÇA
AGRADECIMENTOS Acknowledgements · André Tomé Ribeiro, Eduardo Ferreira, Manuel Silva, Corredor do Rio Leça — Associação de Municípios