ANO YEAR · 2021
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA ARTISTIC RESIDENCE · FRAUGA
LOCAL LOCATION · PICOTE, MIRANDA DO DOURO. PORTUGAL
Pastores goatherds · Telmo Cangueiro, Francisco Preto, Maria da Conceição Gonçalves, Albino Delgado São Pedro, Maria Helena João, Marco Curral, José Manuel São Pedro
Na sequência da apresentação do projeto "A Fala das Cabras e dos Pastores: Lagoa" na XXI Bienal Internacional de Arte de Cerveira fui convidado, pela Frauga - Associação para o Desenvolvimento Integrado de Picote, a realizar uma residência artística nesse mesmo território. O objetivo era continuar a desenvolver o projeto, fazendo o registo audiovisual das relações de comunicação entre os pastores de Picote e o seu gado. Para o efeito, selecionaram-se quatro aldeias desta região transmontana que ainda praticam a pastorícia — Picote, Duas igrejas, Freixiosa e Vila Chã — cinco pastores e duas pastoras.
No desenvolvimento deste projeto interessou-me estudar, em paralelo, a biografia dos diferentes locais, aquilo que é específico, as ligações ancestrais entre os recursos, a comunidade e as estratégias. Nesta procura, descobri que um dos artefactos característicos de Picote são monolíticos em pedra, nos quais eram efetuadas esculturas em relevo ou textos vinculando um determinado significado simbólico - as estelas.
Feito o registo audiovisual das vocalizações dos diferentes pastores e a edição final da peça (FIG. 1), procurei criar um objeto que fizesse a transcriação gráfica destes sons e, assim, registasse fisicamente esta linguagem. A criação de um objecto em pedra em relação com as estelas surgiu naturalmente, enquanto solução que melhor cumpria a necessidade de representação do local em questão, por um lado, e por outro como a mais duradoura, já que a pedra continua a ser umas das formas mais universais, básicas e primordiais de transmitir informação.
A PEDRA BOCA (FIG. 2) é uma peça em granito com 64 x 43 x 14cm, com um espectro sonoro de uma vocalização de pastor gravado em baixo relevo. Pretendeu-se representar e perpetuar um exemplo da fala das cabras e dos pastores de Picote, traduzindo a sua musicalidade, tempo, intensidade e fonética.
A porção de granito usada na peça foi extraída da pedreira abandonada de Picote, junto à fronteira com Espanha, na margem do rio Douro. A extração foi realizada manualmente pelo antigo dono da pedreira, o pedreiro Ricardo Duarte, também ele residente em Picote (FIG.3).
O projeto desta residência artística será finalizado em 2023 quando a peça, actualmente exposta no EcoMuseu da Terra de Miranda, for submergida no rio Douro ou enterrada em Picote, em local desconhecido, para melhor preservar a informação gráfico-sonora. Até porque é da própria natureza das estelas estarem enterradas e serem encontradas séculos depois.
Esta ação será registada em vídeo e integrará o filme do processo de criação.
PEDRA BOCA — METODOLOGIA DE TRABALHO
A) Análise do Contexto
A aldeia de Picote localiza-se em pleno Parque Natural do Douro Internacional.
Na Idade do Ferro, devido à sua localização alta e defensiva, instalou-se um castro na área da Fraga de Puio. Posteriormente, na época romana, Picote foi um importante aglomerado populacional, admitindo-se que tenha sido “a capital de uma ampla civitas abrangendo o território que, na Idade Média, seria a Terra de Miranda”.
O Miradouro da Fraga de Puio permite contemplar a pronunciada curva do rio Douro e observar o canhão fluvial do Douro Internacional onde as arribas graníticas chegam a ter mais de 200 metros de altura.
FIG. 5 — Estelas encontradas na aldeia de Picote. Acervo do Museu de Miranda e Eco-Museu da Terra de Miranda.
B) Estelas
Durante a residência em Picote apercebi-me da riqueza arqueológica da aldeia. Os berrões (estátuas proto-históricas de pedra, em forma zoomórficas) e as estelas são parte do património da aldeia a preservar e a descobrir.
A função das estelas era transmitir significado simbólico, funerário, mágico-religioso, territorial e politico. Foi uma estratégia que perdurou no tempo e permitiu-nos perceber a história da aldeia e da região.
Influenciado por este objecto, decidi criar uma peça em granito, esculpida com uma forma sonora que pudesse representar e perpetuar uma das vocalizações dos pastores de Picote.
C) Estudo de Dimensões
Para a definição das dimensões da peça, desenvolvi uma regra de proporções tendo como base a minha altura e o sistema Modulor, elaborado por Le Corbusier.
Defini 4 posições-tipo às quais fiz corresponder diferentes alturas:
— POSIÇÃO I: a trabalhar ou a respigar no campo = 68 cm
— POSIÇÃO II: a rezar de joelhos = 138 cm
— POSIÇÃO III: de pé = 190 cm
— POSIÇÃO IV: de pé e braço esticado = 240 cm
Tendo por base as quatro alturas definidas e a geometria da Proporção Áurea, estabeleci as restantes dimensões (largura e profundidade) necessárias para a criação da peça:
— POSIÇÃO I = 68 cm alt. x 42 cm larg. x 14 cm prof.
— POSIÇÃO II = 138 cm alt. x 85,3 cm larg. x 28 cm prof.
— POSIÇÃO III = 190 cm alt. x 117,4 cm larg. x 39,1 cm prof.
— POSIÇÃO IV = 240 cm alt. x 148,3 cm larg. x 49,4 cm prof.
Tirando partido do conjunto de dimensões mais pequenas da posição I, optei por usar esta posição (trabalhar ou respingar no campo) para a construção da peça, que se constituiu como o primeiro protótipo de uma vocalização da Fala das Cabras e dos Pastores.
D) Estudo de Espectros Sonoros
Para a representação visual das vocalizações dos pastores trabalhei com o músico José Alberto Gomes, Professor no departamento de Som e Imagem da Universidade Católica do Porto. Os gráficos resultantes do nosso estudo são uma representação da distribuição da energia do som no espectro sonoro. O que quer dizer que, traduzindo o gráfico, é possível perceber, de forma bastante fiel, os trejeitos e o linguajar destes pastores.
Procuramos chegar à construção de um sistema de representação gráfica do espectro sonoro que pudesse traduzir eficazmente as vocalizações de acordo com os seguintes parâmetros: tempo, musicalidade, intensidade e fonética.
A tipologia de gráfico escolhida para ser trabalhada na peça de granito foi a Nº3 (FIG.10).
E) Seleção da vocalização para peça
Depois de escolhida a forma gráfica de representação dos espectros sonoros, restava selecionar a vocalização para ser gravada na Estela. Fiz uma pré-seleção de vocalizações, que depois foram transformadas em gráficos. Destas escolhi 3 pelo seu interesse sonoro e visual. Acabei por selecionar a vocalização 3, (FIG. 14) dita pela pastora de Vila Chã, Maria da Conceição.
FIG. 11 — Conjunto de gráficos resultantes de diferentes vocalizações, demonstrativa da riqueza visual produzida por estes sons.
F) ADEQUAÇÃO DO GRÁFICO AO MÉTODO DE GRAVAÇÃO
O software usado para a representação gráfica do espectro sonoro recorria a uma escala de intensidade através de gradações de cor, do cinza claro ao negro. Na transposição para a máquina de jato de areia, que permitiu a gravação na pedra de granito, vectorizou-se o desenho e transformou-se a escala de cor numa escala de espessura de linhas.