Exposição Colectiva Collective Exhibition
Linha Amarela: Campanice, Porto
06.11.2021 — 19.12.2021
“Sous les pavés, la plage” - debaixo das pedras da calçada, a praia. Esta foi uma das últimas frases inscritas nas paredes de Paris em Maio de 1968. Ainda que na definição de autor, anónimo é a melhor das suas possibilidades.
O sublime desta frase submersa na vertigem e rebelião de um corpo estudantil e de toda uma geração, deposita-se na potência imaginária de onde, por debaixo das pedras do chão, encontraremos esse solo livre, selvagem e indomável. Encontramos o chão árido, a praia, o mar e o desmedido fim das coisas. A frase surge no fim, com a cidade ainda a fumegar e a respirar da correria, surge no fim de longas semanas onde as pedras da calçada foram extraídas para arremessar, barricar, impedir e provocar um caos de que nenhuma outra revolução viveu sem. Pedras e montras em trémula polifonia.
Ao imaginar essa praia de Paris, não me é permitido desviar o olhar de todos aqueles que se baixaram para com a mão extrair uma pedra. A pedra e a mão, relação interina desde os primeiros tempos, a pedra e a escala da mão, a mão e a escala da pedra.
Aquilo que a arqueologia narra é sobretudo uma história escrita a partir da natureza especulativa das relações miméticas da mão com as matérias-primas, das quais a pedra é de si a primeira palavra.
Falemos em exercício, aquele que Alexandre Delmar daqui parte, resulta de uma extensa catalogação especulativa, surpreendente por continuamente se diluir nas ficções das pedras e não na sua natureza geológica. Entre as mármores e os granitos encontramos as mós, círculos plasmados em cimento utilizados enquanto ferramenta de polimento e segredo distintivo das práticas mais antigas e inovadoras dos trabalhadores da Cooperativa dos Pedreiros. Tudo o que vemos encaixa na mão, é medido à escala da mão, colhido à escala da mão, mapeando pedras sobre uma montra, de vidro. O vidro como avesso da pedra.
A montra que vemos é do novo atelier coletivo da Campanice que ocupa um dos edifícios pertencentes à Cooperativa de Produção dos Operários Pedreiros Portuenses. Um edifício de fachada para a Rua de Braancamp nas costas da grande arquitetura fabril da cooperativa, hoje desativada. Diria que não são as ruínas ou os lugares desativados que perduram a história do lugar, por sua vez aquilo que produzem é uma recondução dos tempos para um futuro “pós condição presente”, retomando a origem e a natureza das coisas como num círculo. Aquilo que ainda verificamos nas encostas do edifício dos Campanice é o hiato de uma cidade, a sua margem agrícola a emergir novamente revelando-nos o quão a história é cíclica e impossível de cobrir.
Tão cíclica quanto a prática de um artista, que na sua autogénese, age enquanto investigador e narrador de estímulos que sempre se cruzam e levam a aproximar. Diríamos que as criações de Alexandre Delmar continuam a viver dessa génese, encontram-se tal como os lugares, a história, as vidas, num contínuo processo de recondução, de reconversão, e novamente, de encontro. Aquilo que vemos não deixa de ser um encontro, primeiro do artista com o lugar e depois, de novo, do artista com a sua obra.
O encontro especulativo entre as pedras e o lugar vazio da cooperativa no seio de uma cidade em autoconstrução, o encontro destas pedras e deste lugar com o lançamento das “lapadas à pastor” do lugar de Lagoa em Trás-os-Montes.
Nesta prova de vizinhança, entre o catálogo de pedras e as imagens estereoscópicas dos pastores a lançar as pedras enquanto instrumento de arremesso para controlo e chamamento dos animais, somos inteligivelmente posicionados sobre a matéria ardente das imagens e sua multiplicidade de origens, tempos e realidades.
E num desvio astigmático, voltamos ao princípio, e de frente para estas imagens estamos de novo diante da calçada, as pedras da calçada, do seu fundo, a praia.
Texto por João Terras
Inventário de pedras da Cooperativa dos Pedreiros.
Estudo estroboscópico sobre o lançamento de pedras praticado por pastores transmontanos para orientação do gado e proteção contra predadores.
Montagem da exposição
"As 237 pedras que os pedreiros rejeitaram, tornaram-se pedras angulares. Vinde, vou oferecer-vos todas elas."
Desmontagem da exposição. Oferta das imagens aos presentes.
Ano year · 2021
Texto text · João Terras
Produção Production · Maria Ruivo
GALERIA GALLERY · Campanice, Porto
Exposição Colectiva Collective Exhibition
Linha Amarela: Campanice, Porto
06.11.2021 — 19.12.2021
“Sous les pavés, la plage” - debaixo das pedras da calçada, a praia. Esta foi uma das últimas frases inscritas nas paredes de Paris em Maio de 1968. Ainda que na definição de autor, anónimo é a melhor das suas possibilidades.
O sublime desta frase submersa na vertigem e rebelião de um corpo estudantil e de toda uma geração, deposita-se na potência imaginária de onde, por debaixo das pedras do chão, encontraremos esse solo livre, selvagem e indomável. Encontramos o chão árido, a praia, o mar e o desmedido fim das coisas. A frase surge no fim, com a cidade ainda a fumegar e a respirar da correria, surge no fim de longas semanas onde as pedras da calçada foram extraídas para arremessar, barricar, impedir e provocar um caos de que nenhuma outra revolução viveu sem. Pedras e montras em trémula polifonia.
Ao imaginar essa praia de Paris, não me é permitido desviar o olhar de todos aqueles que se baixaram para com a mão extrair uma pedra. A pedra e a mão, relação interina desde os primeiros tempos, a pedra e a escala da mão, a mão e a escala da pedra.
Aquilo que a arqueologia narra é sobretudo uma história escrita a partir da natureza especulativa das relações miméticas da mão com as matérias-primas, das quais a pedra é de si a primeira palavra.
Falemos em exercício, aquele que Alexandre Delmar daqui parte, resulta de uma extensa catalogação especulativa, surpreendente por continuamente se diluir nas ficções das pedras e não na sua natureza geológica. Entre as mármores e os granitos encontramos as mós, círculos plasmados em cimento utilizados enquanto ferramenta de polimento e segredo distintivo das práticas mais antigas e inovadoras dos trabalhadores da Cooperativa dos Pedreiros. Tudo o que vemos encaixa na mão, é medido à escala da mão, colhido à escala da mão, mapeando pedras sobre uma montra, de vidro. O vidro como avesso da pedra.
A montra que vemos é do novo atelier coletivo da Campanice que ocupa um dos edifícios pertencentes à Cooperativa de Produção dos Operários Pedreiros Portuenses. Um edifício de fachada para a Rua de Braancamp nas costas da grande arquitetura fabril da cooperativa, hoje desativada. Diria que não são as ruínas ou os lugares desativados que perduram a história do lugar, por sua vez aquilo que produzem é uma recondução dos tempos para um futuro “pós condição presente”, retomando a origem e a natureza das coisas como num círculo. Aquilo que ainda verificamos nas encostas do edifício dos Campanice é o hiato de uma cidade, a sua margem agrícola a emergir novamente revelando-nos o quão a história é cíclica e impossível de cobrir.
Tão cíclica quanto a prática de um artista, que na sua autogénese, age enquanto investigador e narrador de estímulos que sempre se cruzam e levam a aproximar. Diríamos que as criações de Alexandre Delmar continuam a viver dessa génese, encontram-se tal como os lugares, a história, as vidas, num contínuo processo de recondução, de reconversão, e novamente, de encontro. Aquilo que vemos não deixa de ser um encontro, primeiro do artista com o lugar e depois, de novo, do artista com a sua obra.
O encontro especulativo entre as pedras e o lugar vazio da cooperativa no seio de uma cidade em autoconstrução, o encontro destas pedras e deste lugar com o lançamento das “lapadas à pastor” do lugar de Lagoa em Trás-os-Montes.
Nesta prova de vizinhança, entre o catálogo de pedras e as imagens estereoscópicas dos pastores a lançar as pedras enquanto instrumento de arremesso para controlo e chamamento dos animais, somos inteligivelmente posicionados sobre a matéria ardente das imagens e sua multiplicidade de origens, tempos e realidades.
E num desvio astigmático, voltamos ao princípio, e de frente para estas imagens estamos de novo diante da calçada, as pedras da calçada, do seu fundo, a praia.
Texto por João Terras
Inventário de pedras da Cooperativa dos Pedreiros.
Estudo estroboscópico sobre o lançamento de pedras praticado por pastores transmontanos para orientação do gado e proteção contra predadores.
Montagem da exposição
"As 237 pedras que os pedreiros rejeitaram, tornaram-se pedras angulares. Vinde, vou oferecer-vos todas elas."
Desmontagem da exposição. Oferta das imagens aos presentes.
Ano year · 2021
Texto text · João Terras
Produção Production · Maria Ruivo
GALERIA GALLERY · Campanice, Porto