"Entre o Granito, um Atlas" é o resultado da minha residência artística na aldeia de Picote no âmbito dos Encontros da Primavera 2021, promovidos pela FRAUGA - Associação para o Desenvolvimento Integrado de Picote.
O convite dos programadores para a residência, teve como objectivo principal a continuação do registo audiovisual da "A Fala das Cabras e dos Pastores", desta vez, em Picote e em outras aldeias de Miranda do Douro.
Para além desse mapeamento da linguagem sonora usada entre os pastores e os seus animais de pastorícia, tive a oportunidade de criar um diário que se transformou num atlas sobre o território.
Obviamente, e porque não tive outra opção, parti de uma visão documental, mas rapidamente surgiram ficções e foi nessa linha tênue que me interessou permanecer.
Há uma história da pedra que não é a geológica. E, por vezes, tudo parece gravitar à volta dela.
O Chico das Cabras diz preferir as cabras às ovelhas. Diz que são mais afoitas.
As ovelhas amouxam do sol quando faz muito calor e não comem. O seu estado de domesticação está numa fase mais aguda tornando-as incompletas.
A cabra preserva o que a torna bravia. As silvas chegam-lhe para sustento.
Perto da corriça, diz haver uns quantos chibeteiros de granito, abrigos antigos onde se escondiam os cabritos mais pequenos quando se ia para o monte. Eram umas pequenas arcas feitas em pedra com grades de granito. Contou-me que um lobo havia metido focinho e cabeça dentro da chibeteira para apanhar o pedaço de carne. Para a retirar, com as orelhas a ocupar espaço, debateu-se com as grades até sufocar. Ao fim do dia estava o lobo enforcado com o cabrito ainda nos dentes.
Há um caminho que vai à pedreira desativada. Antes de chegar à pedreira existe ainda um barraco e um telheiro que serviam de apoio aos trabalhos de extracção. Entre a pedra em bruto e os cortes, há vários caminhos. Um deles leva à ribanceira que permite a observação da Barragem de Picote.
Da pedreira desativada consegue-se ver o corte que divide os dois territórios.
Os abutres sobrevoam esta área pois o cemitério dos burros não é longe.
Pela estrada nacional, sem saída, que leva à barragem, há uma curva acentuada com uma subida serrana. Nessa subida ainda é possível perceber as pedras adaptadas e moldadas por bípedes. Lá em cima, ramifica-se. Os caminhos de cabra levam às ruínas do bairro operário nos anos 50, talvez um dos mais pobres. Eram castros adaptados às fragas e ao monte com vista sobre as encostas do rio, mas sem qualquer intuito de defesa. Era apenas um local proximo dos postos de trabalho na construção da barragem.
Alguns desses abrigos ainda são visíveis. Todos feitos em pedra local e, alguns, aproveitando ladeiras de fragas mais alta para protecção do vento norte.
Estas eram as casas dos barrigistas marteleiros que viviam, sustentavam-se e morriam pelo granito. Da sua atividade saía um pó branco que eles respiravam com prazer. Até essa poeira era parte do seu corpo.
Dizia-se que os marteleiros mastigavam o granito das encostas para dar forma à barragem. Na verdade, mastigavam os seus próprios pulmões.
Nestas casas de xisto e granito encastelado, acordavam com suores frios e a emanar cheiros. Outros vomitavam sangue e enchiam tachos. Talvez se o bebessem ficariam como antes, pois o sangue regressaria ao seu corpo.
Apesar de tudo era a civilização da pedra, mesmo com os telhados feitos de sacos de papel do cimento.
Na barragem, havia um cheiro característico de marteleiro com silicose nos pulmões. Talvez seja como aquele odor a vesícula que anuncia tumor.
Os túneis da barragem escavados no monte convergem para um centro onde não é permitida a visita.
O covil surge como paisagem técnica.
Ferramentas
Se não tivessem ponteiros e martelos, usariam tinta para marcar os negativos das mãos nas paredes e provar que existiram enquanto corpos.
Um deles tinha silicose e soltava escarros muito espessos. Não se sabia donde vinha tamanha viscosidade. Numa tábua, em fila indiana, reluziam e estavam espalmados.
Mesmo assim, continuava a abrir as caricas das cervejas dos companheiros com os dentes de granito.
Na vista da cidade elétrica surge o sublime não intencional. O fascínio pela luz subverte a ordem natural: está separada do fogo, não precisa de oxigénio, não é afetada pelo vento. A paisagem elétrica emerge assim como parte importante da fenomenologia da sociedade industrializada.1
Junto às torres de transmissão ouve-se um zumbido característico, uns estalidos de fritura. Os pássaros habituaram-se a este ruido de corrente elétrica. Os estorninhos que nidificam nesta zona, adoptaram este som ao seu canto na defesa do seu território e na competição intraespecífica.
No rio, junto à barragem, segue um barco pequeno carregado de pulmões e vai para jusante.
Há um outro som que é provocado pela vibração do vento nas esferas de sinalização localizadas nas torres elétricas. As esferas, de várias cores, servem para facilitar a visibilidade dos cabos e atrair os relâmpagos.
A vibração é provocada por um erro de instalação, pois deixaram demasiado espaço entre os cabos e as esferas.
A partir do defeito criou-se um som característico daquela paisagem que se propaga ao longo de quilómetros.
Os locais já não o ouvem. A habituação fez com que confundam com os sons naturais. Quando a vibração pára, sentem alivio.
A dividir o terreno do Telmo há uma rede ovelheira que tinha os restos de uma raposa que lá ficou presa. Era impossível retirar as sobras do animal já sem vida, de tal forma o aço estava enrolado ao seu corpo. Deve ter passado dias a lutar contra a rede e o seu próprio espaço corporal.
Os cães vão lá todos os dias cheirar e perceber se o podem desfazer novamente. Ficam sentados a olhar para o pedaço de pêlo pendurado à espera de algum movimento.
Durante as gravações em Miranda do Douro para o projecto da “A Fala das Cabras e dos Pastores”, informaram-me que na aldeia de Freixiosa havia um casal de pastores, o Albino São Pedro e a Maria Helena. Tinham-me dito que o Albino havia sido pastor toda a vida e tinha uma cabrada grande.
Quando fui ter com eles à corriça e falei do projecto que tenho vindo a desenvolver, o Albino disse que já tinha sido actor num filme nos anos 70.
Contou-me que, com 14 anos, participou num dos filmes mais importantes da história do cinema português, o “Trás-os-Montes” de António Reis e Margarida Cordeiro.
Na primeira cena do filme de 1976, o jovem pastor Albino tenta direccionar o gado com a peculiar linguagem dos pastores.
Em 2021 gravei com ele “A Fala das Cabras e dos Pastores”.
Durante as caminhadas que fui fazendo com o Albino e a Maria, fui-me apercebendo de pequenas pulseiras, círculos de palha espalhados num monte, na aldeia de Freixiosa. Este objecto circular e geométrico destaca-se no solo e na vegetação, principalmente na periferia de fragas. Só num dos caminhos encontrei mais de 200 círculos. A pastora Maria Helena disse-me que quando anda com as cabras, vai criando círculos com a palha verde e atira para o chão. Não se lembra quando começou, mas aquele jogo de entrelaçar mãos, dedos e palha ajuda-a a resolver o problema de ansiedade de que sofre.
Sem se aperceber do acto, vai criando a sua instalação artística no monte.
É um corpo intermédio entre a criança e o adulto — estes são alguns dos adolescentes que ainda vivem em Picote.
Transformam-se os corpos e o território, mas também as estratégias e as ferramentas básicas desses lugares.
Os poucos adolescentes da aldeia, que ainda vivem em Picote, têm uma relação imperfeita com o rio. O rio já não é o centro que outrora foi. Esta é uma geração que tem poucas histórias para contar sobre ele e sobre o granito.
O caminho largo da aldeia até ao rio é ondulado, mas com opções de trilhos mais estreitos e inclinados. As torres de alta tensão não serpenteiam com o caminho, têm um caminho próprio.
Na chegada, percebe-se melhor o granito colossal das margens. Há um conjunto de fragas redondas na água que se destacam. As arribas sufocam o rio que antes era chamado de zangado.
É fácil atravessar para Espanha a nado. Há um local onde é fácil subir para o outro país. A vegetação e o granito são exactamente os mesmos.
O rio tem cianobactérias provocadas pelas águas paradas e profundas da barragem. Antes da barragem, em tempos de seca, podia-se ver o leito do rio e as pedras redondas. Agora, devem ser esferas perfeitas mas sensíveis à radiação solar.
“O cavalo disse: eu sou o único. O vazio, que me montava, deitei-o fora. Este é o meu estábulo. Eu cresço devagar. E aqui dentro, devoro o silêncio.” 2
O registo da “A Fala das Cabras e dos Pastores”, em Miranda do Douro, foi criado nas aldeias de Picote, Duas igrejas, Freixiosa e Vila Chã com os pastores Telmo Cangueiro, Francisco Preto, Maria da Conceição Gonçalvez, Albino Delgado São Pedro, Maria Helena João, Marco Curral e Jose Manuel São Pedro.
Estelas encontradas na aldeia de Picote. Acervo do Museu de Miranda e Eco-Museu da Terra de Miranda.
A função das estelas era transmitir significado simbólico, funerário, mágico-religioso, territorial e politico. Foi uma estratégia que perdurou no tempo e permitiu-nos perceber a história da aldeia e da região.
Decidi criar uma peça em granito, esculpida com uma forma sonora que pudesse representar e perpetuar uma das vocalizações dos pastores.
Para a definição das dimensões da peça, desenvolvi uma regra de proporções tendo como base a minha altura e o sistema Modulor.
Defini 4 posições-tipo às quais fiz corresponder diferentes alturas:
— POSIÇÃO I: a trabalhar ou a respigar no campo = 68 cm
— POSIÇÃO II: a rezar de joelhos = 138 cm
— POSIÇÃO III: de pé = 190 cm
— POSIÇÃO IV: de pé e braço esticado = 240 cm
Estudo de Espectros Sonoros
Estes gráficos representam visualmente as vocalizações dos pastores de Miranda do Douro. Os gráficos resultantes do estudo são uma representação da distribuição da energia do som no espectro sonoro.
O que quer dizer que, traduzindo o gráfico, é possível perceber, de forma bastante fiel, os trejeitos e o linguajar destes pastores.
Procurei chegar à construção de um sistema de representação gráfica do espectro sonoro que pudesse traduzir eficazmente as vocalizações de acordo com os seguintes parâmetros: tempo, musicalidade, intensidade e fonética.
O software usado para a representação gráfica do espectro sonoro recorria a uma escala de intensidade através de gradações de cor, do cinza claro ao negro. Na transposição para a máquina de jato de areia, que permitiu a gravação na pedra de granito, vectorizou-se o desenho e transformou-se a escala de cor numa escala de espessura de linhas.
Procurei criar um objeto que fizesse a transcriação gráfica destes sons e, assim, registasse fisicamente esta linguagem. A criação de um objecto em pedra em relação com as estelas surgiu naturalmente, enquanto solução que melhor cumpria a necessidade de representação do local em questão, por um lado, e por outro como a mais duradoura, já que a pedra continua a ser umas das formas mais universais, básicas e primordiais de transmitir informação.
ANO YEAR · 2021
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA ARTISTIC RESIDENCE · FRAUGA - Encontros da Primavera 2021
LOCAL LOCATION · PICOTE, MIRANDA DO DOURO. PORTUGAL
Pastores shepherds · Telmo Cangueiro, Francisco Preto, Maria da Conceição Gonçalves, Albino Delgado São Pedro, Maria Helena João, Marco Curral, José Manuel São Pedro
Com o apoio de Maria João Ruivo, José Alberto Gomes, Isaque Pinheiro, Luís Ribeiro da Silva, Patrícia Geraldes, Jorge Lourenço, Humberto Martins, António Bárbolo Alves, Mármores e Granitos Felisberto, Ricardo Duarte.
1 - David E. Nye
2 - Tomas Tranströmer
Livro" O Lodo e as Estrelas" de Telmo Ferraz