A voz, a pele, os movimentos, o deslocar, o comunicar, a Terra e o Homem. Uma historiografia da mão, uma literacia da boca. Em sentido duplo, do fazer ao dizer, a imanência da Natureza, o espaço do Homem, o lugar cambial que ocupam em relação.
Ensaios é um projecto em construção, dividido em actos, sem sequência narrativa, prólogo ou epílogo.
The voice, the skin, the moves, swaying, communicating, Earth and Man. A Historiography of the hand, a literacy of the mouth. A double sense, from doing to saying, Nature’s immanence, Man’s space, the changing place they take in relation.
Ensaios is a work in process, divided in acts, without a narrative sequence, prologue or epilogue.
As Canhonas do Pato Vila The Sheeps of Pato Vila
Pedras do Rio Sabor Stones of the Sabor River
A Fraga do Castelo The Fraga do Castelo
A Fraga do Castelo representava o local mais proibido da aldeia. Ouvir falar da Fraga despertava ansiedade.
Para além de distante do centro da aldeia, representava perigos, penedos, poços, alturas e partes de histórias de lobos e javalis que por lá andavam.
Os adultos, a não ser pelo sentido pragmático, não se aventuravam por passeio para ajudar na curiosidade dos mais novos. Tinham ouvido as mesmas histórias quando garotos e algo se tinha vincado nas memórias de forma a reprimir qualquer visita.
“É onde os mouros andaram!”, diziam os mais velhos desdentados.
"Os mouros" é a forma simples e inocente de representar tempos mais antigos que eles próprios. A memória faz-se destas pequenas implicações e mitos. Dá-se carga negativa ao mouro e sem razão.
Diz-se que foram encontradas moedas e cerâmica. Há uma clara evidência de terras mexidas, mas o mato torna já difícil a leitura do espaço.
Em baixo fica o rio Sabor, o último rio selvagem. O local alto e claro seria de excelente qualidade de observação e atividades defensivas. É difícil perceber a escala do curso da água.
∴
As pedras cortadas em forma de navalha apontam o precipício. A vertigem é bem mais intensa que o deslumbramento da paisagem. Os passos têm de ser bem calculados. O vento, se está com demasiada força, atrasa ainda mais a passada.
Em baixo vê-se campos recentemente lavrados. A sul, o gato que é formado por oliveiras, já esteve mais definido.
Parece que as pedras estão ansiosas por se atirar ao fundo. Rebolam algum tempo, mas o voo é mais longo.
Há um certo fascínio pelo voo. Se nós não conseguimos, porque não haveríamos de ajudar outras coisas a voar?
∴
António era o querubim da tia Páscoa. Tinha pouco sentido escolar e, à falta de melhor, decidiu pedir a cabrada ao tio Zé. Eram 48 e todas elas de estômago farto.
O aspirante a pastor deu-lhe o jeito. Era já elogiado pela regra que impunha às teimosas cabras. Tinha caminhos certos e as cabras conheciam-nos.
∴
Ao contrário das ovelhas, as cabras têm uma resistência especial. Gostam de subir e descer fragas espetadas. Devem ter ainda os instintos antigos dos seus antepassados para desafiar a verticalidade do monte. Os cascos, como ganchos, engatam nas frinchas das pedras e permitem a locomoção rápida.
Não se percebe o seu gosto pelas silvas. Qual a crosta que protege a cabra dos afiados espinhos no corpo e na boca. Qual o processo complexo desenvolvido nos seus quatro depósitos que lhe permite, depois de triturada a mais dura das ervas, abrir o esfíncter e deleitar a terra com redondos presentes.
O tio Amâncio diz que “elas gostam de ir provando” e por isso são mais teimosas que as ovelhas. Quando vêem um possível petisco não se importam de sair do respectivo caminho e apanhar uma pedrada nos cornos. O tio Amâncio é especialista nas pedradas de pastor. Já cegou várias.
Lembro-me de andar com ele quando era miúdo. Uma cornuda, em duas patas, beliscava uns ramos de oliveira. O tio Amâncio, enquanto praguejava, lançou à pastor uma pedra xistosa em forma de sola. A distância era demasiada para acertar com precisão no galho ou perto da cabra para a assustar. A pedra bateu entre os dois cornos, partindo-se em três pedaços.
A cabra ficou sem força nas patas traseiras, caindo para o lado, ficando a cambalear um pouco antes de seguir as outras ainda trôpega. Naquele dia, apenas, tinha a lição aprendida.
A Fraga do Castelo era um dos locais para pasto. O tio Zé tinha lá perto um trigal já devastado, mas que merecia a atenção da cabrada e do António.
Depois de sair do trigal, seguiu para a Fraga. Aquelas pedras deviam atraí-lo.
Enquanto as cabras se empanturravam, ia procurando pedras para as fazer voar Fraga abaixo. Por não serem redondas, a resistência é maior. Têm bicos e a aleatoriedade do movimento faz com que seja um belo espetáculo vê-las a bater nas outras e voar para o fundo do rio. As maiores são as mais apetecíveis, mas nem sempre estão à mão.
∴
Nesse dia, eu estava no rio, perto do poço do Belchior a pescar mais paciência que peixes. Ouvia-se alguns ruídos ao fundo em eco devido à encosta côncava.
Estava a pescar com a cana de bambu do avô Artur. Era rija como cornos e pouco sensível ao picar dos barbos mais miúdos. Não importava, pois a bóia de cortiça pouco aprumada, era sensível o suficiente para ir abaixo com o pousar de um moscardo.
Ouviu-se mais uma vez o ruído de pedras a rolar e o bater na água seguido de eco.
A bóia de cortiça tinha desaparecido e a ponteira dobrava, quase a partir, a cana de bambu estava a querer sair-me das mãos. Puxei e fui puxado, mas a luta não demorou muito. Com um esticão violento o peixe levou tudo atrás, anzol, bóia e chumbeira. Devia ser o maior lúcio do rio.
Ansioso, voltei a colocar linha, fiz o tenso, meti a chumbada com o destorcedor, peguei numa outra bóia, coloquei o morcão e lancei-a. Tinha de ajustar contas com aquele monstro. Mas só senti o silêncio mais profundo da água. Só o movimento da maré fazia mexer a bóia solitária.
Ali estive até quase não distinguir a bóia dos reflexos da água ao final do dia.
Derrotado, enrolei a linha e vim embora.
As cabras do tio Zé estavam a beber água junto ao poço.
∴
Já de noite, ouvi os gritos da minha tia.
O Osvaldo disse-me que encontraram o corpo do António perto do chorão grande, ao lado do Belchior. Eu tinha estado lá.
A chorar, disse-me que o seu corpo frágil não tinha ponta por onde se pegar. Era um farrapo onde não se distinguia a sua forma ou vontade.
As rochas aguçadas tinham feito o seu trabalho em retalhar o meu primo. O seu corpo foi a última pedra que ele lançou Fraga abaixo.
∴
Enquanto o Osvaldo contava o sucedido, eu não conseguia pensar em mais nada a não ser naquele peixe enorme. “Aquele peixe tinha vivido muito, devia ser, pela força, uma besta corpulenta, mas de certeza que não morreria de velho, alguém o pescou noutro dia qualquer. De uma maneira ou de outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a minha marca, era meu.”
Ou talvez fosse o António, com aquele barulho seco que ouvi antes da puxada. Talvez tivesse sido o António a puxar-me a cana e com violência levou-me linha, chumbada, anzol, bóia e me queria com ele no fundo do rio, perto das pedras.
A Fala das Cabras e dos Pastores The Speech of Goats and Goatherds
Estudo Estroboscópico sobre Lapadas de Pastor Stroboscopic Study about Sheperd's Stone Throwings
A Procissão de Santo Arsénio Saint Arsenius' Procession
Casas de Emigrantes House of Emigrants
Lavoura de Dezembro December Tillage
Boca do Corpo Mouth of the Body
Em construção desde on going since · 2011
Local location · Lagoa, Trás-os-Montes, Portugal
A voz, a pele, os movimentos, o deslocar, o comunicar, a Terra e o Homem. Uma historiografia da mão, uma literacia da boca. Em sentido duplo, do fazer ao dizer, a imanência da Natureza, o espaço do Homem, o lugar cambial que ocupam em relação.
Ensaios é um projecto em construção, dividido em actos, sem sequência narrativa, prólogo ou epílogo.
The voice, the skin, the moves, swaying, communicating, Earth and Man. A Historiography of the hand, a literacy of the mouth. A double sense, from doing to saying, Nature’s immanence, Man’s space, the changing place they take in relation.
Ensaios is a work in process, divided in acts, without a narrative sequence, prologue or epilogue.
As Canhonas do Pato Vila
The Sheeps of Pato Vila
Pedras do Rio Sabor
Stones of the Sabor River
A Fraga do Castelo
The Fraga do Castelo
A Fraga do Castelo representava o local mais proibido da aldeia. Ouvir falar da Fraga despertava ansiedade.
Para além de distante do centro da aldeia, representava perigos, penedos, poços, alturas e partes de histórias de lobos e javalis que por lá andavam.
Os adultos, a não ser pelo sentido pragmático, não se aventuravam por passeio para ajudar na curiosidade dos mais novos. Tinham ouvido as mesmas histórias quando garotos e algo se tinha vincado nas memórias de forma a reprimir qualquer visita.
“É onde os mouros andaram!”, diziam os mais velhos desdentados.
"Os mouros" é a forma simples e inocente de representar tempos mais antigos que eles próprios. A memória faz-se destas pequenas implicações e mitos. Dá-se carga negativa ao mouro e sem razão.
Diz-se que foram encontradas moedas e cerâmica. Há uma clara evidência de terras mexidas, mas o mato torna já difícil a leitura do espaço.
Em baixo fica o rio Sabor, o último rio selvagem. O local alto e claro seria de excelente qualidade de observação e atividades defensivas. É difícil perceber a escala do curso da água.
∴
As pedras cortadas em forma de navalha apontam o precipício. A vertigem é bem mais intensa que o deslumbramento da paisagem. Os passos têm de ser bem calculados. O vento, se está com demasiada força, atrasa ainda mais a passada.
Em baixo vê-se campos recentemente lavrados. A sul, o gato que é formado por oliveiras, já esteve mais definido.
Parece que as pedras estão ansiosas por se atirar ao fundo. Rebolam algum tempo, mas o voo é mais longo.
Há um certo fascínio pelo voo. Se nós não conseguimos, porque não haveríamos de ajudar outras coisas a voar?
∴
António era o querubim da tia Páscoa. Tinha pouco sentido escolar e, à falta de melhor, decidiu pedir a cabrada ao tio Zé. Eram 48 e todas elas de estômago farto.
O aspirante a pastor deu-lhe o jeito. Era já elogiado pela regra que impunha às teimosas cabras. Tinha caminhos certos e as cabras conheciam-nos.
∴
Ao contrário das ovelhas, as cabras têm uma resistência especial. Gostam de subir e descer fragas espetadas. Devem ter ainda os instintos antigos dos seus antepassados para desafiar a verticalidade do monte. Os cascos, como ganchos, engatam nas frinchas das pedras e permitem a locomoção rápida.
Não se percebe o seu gosto pelas silvas. Qual a crosta que protege a cabra dos afiados espinhos no corpo e na boca. Qual o processo complexo desenvolvido nos seus quatro depósitos que lhe permite, depois de triturada a mais dura das ervas, abrir o esfíncter e deleitar a terra com redondos presentes.
O tio Amâncio diz que “elas gostam de ir provando” e por isso são mais teimosas que as ovelhas. Quando vêem um possível petisco não se importam de sair do respectivo caminho e apanhar uma pedrada nos cornos. O tio Amâncio é especialista nas pedradas de pastor. Já cegou várias.
Lembro-me de andar com ele quando era miúdo. Uma cornuda, em duas patas, beliscava uns ramos de oliveira. O tio Amâncio, enquanto praguejava, lançou à pastor uma pedra xistosa em forma de sola. A distância era demasiada para acertar com precisão no galho ou perto da cabra para a assustar. A pedra bateu entre os dois cornos, partindo-se em três pedaços.
A cabra ficou sem força nas patas traseiras, caindo para o lado, ficando a cambalear um pouco antes de seguir as outras ainda trôpega. Naquele dia, apenas, tinha a lição aprendida.
A Fraga do Castelo era um dos locais para pasto. O tio Zé tinha lá perto um trigal já devastado, mas que merecia a atenção da cabrada e do António.
Depois de sair do trigal, seguiu para a Fraga. Aquelas pedras deviam atraí-lo.
Enquanto as cabras se empanturravam, ia procurando pedras para as fazer voar Fraga abaixo. Por não serem redondas, a resistência é maior. Têm bicos e a aleatoriedade do movimento faz com que seja um belo espetáculo vê-las a bater nas outras e voar para o fundo do rio. As maiores são as mais apetecíveis, mas nem sempre estão à mão.
∴
Nesse dia, eu estava no rio, perto do poço do Belchior a pescar mais paciência que peixes. Ouvia-se alguns ruídos ao fundo em eco devido à encosta côncava.
Estava a pescar com a cana de bambu do avô Artur. Era rija como cornos e pouco sensível ao picar dos barbos mais miúdos. Não importava, pois a bóia de cortiça pouco aprumada, era sensível o suficiente para ir abaixo com o pousar de um moscardo.
Ouviu-se mais uma vez o ruído de pedras a rolar e o bater na água seguido de eco.
A bóia de cortiça tinha desaparecido e a ponteira dobrava, quase a partir, a cana de bambu estava a querer sair-me das mãos. Puxei e fui puxado, mas a luta não demorou muito. Com um esticão violento o peixe levou tudo atrás, anzol, bóia e chumbeira. Devia ser o maior lúcio do rio.
Ansioso, voltei a colocar linha, fiz o tenso, meti a chumbada com o destorcedor, peguei numa outra bóia, coloquei o morcão e lancei-a. Tinha de ajustar contas com aquele monstro. Mas só senti o silêncio mais profundo da água. Só o movimento da maré fazia mexer a bóia solitária.
Ali estive até quase não distinguir a bóia dos reflexos da água ao final do dia.
Derrotado, enrolei a linha e vim embora.
As cabras do tio Zé estavam a beber água junto ao poço.
∴
Já de noite, ouvi os gritos da minha tia.
O Osvaldo disse-me que encontraram o corpo do António perto do chorão grande, ao lado do Belchior. Eu tinha estado lá.
A chorar, disse-me que o seu corpo frágil não tinha ponta por onde se pegar. Era um farrapo onde não se distinguia a sua forma ou vontade.
As rochas aguçadas tinham feito o seu trabalho em retalhar o meu primo. O seu corpo foi a última pedra que ele lançou Fraga abaixo.
∴
Enquanto o Osvaldo contava o sucedido, eu não conseguia pensar em mais nada a não ser naquele peixe enorme. “Aquele peixe tinha vivido muito, devia ser, pela força, uma besta corpulenta, mas de certeza que não morreria de velho, alguém o pescou noutro dia qualquer. De uma maneira ou de outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a minha marca, era meu.”
Ou talvez fosse o António, com aquele barulho seco que ouvi antes da puxada. Talvez tivesse sido o António a puxar-me a cana e com violência levou-me linha, chumbada, anzol, bóia e me queria com ele no fundo do rio, perto das pedras.
A Fala das Cabras e dos Pastores
The Speech of Goats and Goatherds
Estudo Estroboscópico sobre Lapadas de Pastor
Stroboscopic Study about Sheperd's Stone Throwings
A Procissão de Santo Arsénio
Saint Arsenius' Procession
Casas de Emigrantes
House of Emigrants
Lavoura de Dezembro
December Tillage
Boca do Corpo
Mouth of the Body
Em construção desde
on going since · 2011
Local location ·
Lagoa, Trás-os-Montes, Portugal