“Chamar à pedra, Fraga” é o nome dado ao projeto desenvolvido na aldeia de São Mamede de Ribatua, no município de Alijó, durante a residência artística Vivificar, promovida pela plataforma de fotografia Ciclo, dedicada à construção de diálogos com a comunidade local e o território através de práticas artísticas contemporâneas.
A expressão “chamar à pedra” é uma forma de dizer antiga utilizada, em ambiente escolar, quando um professor queria chamar um aluno ao quadro para realizar um exercício. A pedra é, neste contexto, aquilo a que popularmente conhecemos por ardósia ou lousa negra, um tipo particular de xisto argiloso. Uma “fraga”, por sua vez, é uma rocha escarpada, uma pedra de grande dimensões, normalmente associada a um lugar identitário. Há uma ironia implícita em chamar a uma pedra "fraga", em dignificar um elemento tão pequeno, aparentemente insignificante e trivial como uma pedra.
Estes dois conceitos (“escola” e “pedra”) que dão corpo ao título do projeto, são reveladores do trabalho que nasceu da imersão em São Mamede de Ribatua e na sua comunidade. Interessou-me, desde logo, estabelecer ligações entre este território e os interesses gerais da minha prática procurando pontos de encontro e de tensão entre a documentação, a ficção, a contemplação e a abstracção, que pudessem criar novas reflexões e narrativas sobre a aldeia.
“Chamar à pedra, Fraga” é um estudo pessoal e crítico de reconhecimento de S. Mamede de Ribatua, que partiu de uma "arqueologia ficcional" para analisar a relação entre o mundo humano (a memória, a ferramenta, a paisagem construída), o mundo mineral (a pedra e a água) e o vegetal (que nutre e sustenta), e as implicações que estes têm uns nos outros.
[A Barragem do Tua, inaugurada em 2011, teve um impacto significativo na aldeia o que não invalidou o surgimento de outros volumes e possibilidades.]
[Em 2020, a aldeia esteve 30 dias sob nevoeiro cerrado. Alguns acusam o aumento da humidade devido à subida das águas do rio provocada pela barragem, mas os mais velhos desmentem. A frequência do nevoeiro é a mesma, principalmente na iminência de vento cieiro no inverno. O que difere é a sua intensidade mais severa. Agora ele é mais espesso, mais opaco.]
[Há uma pequena porção de terra no meio do rio, junto ao laranjal da Califórnia. Esta ilha foi formada pela subida das águas.
Se lhe for permitido o isolamento contínuo, terá um ecossistema próprio.]
[Os peixes nativos como o barbo ou as bogas foram substituídos pelos lúcios e pelas percas, espécies predadoras que não se importam com a ausência de luz no fundo do rio.]
[O caminho até ao laranjal da Califórnia.]
[As mangueiras de elastómero termoplástico usadas para o regadio das laranjeiras vão da aldeia até às encostas do rio. São quilómetros de tubo que viajam pela superfície. Em alguns locais podem-se encontrar pedaços derretidos, objectos escultóricos que resultam do corte e da conexão, a quente, entre tubos.]
Depósitos geométricos para água — paralelepípedo | cone | cilindro
[A vertigem visual e sonora da barragem do Tua permitirá o “salto mortal” para o jacto de água em baixo onde o caudal antigo e o final da linha do Tua ainda são visíveis.
Na turbina — núcleo da máquina total — a água comprimida atravessa com violência provocando pequenos tremores de terra. Neste espaço, ainda sem história, identidade ou referências, há um ritmo e um som rudimentar que reconheço mesmo sem os ter alguma vez ouvido.]
[Na década de 30 e 40, milhares de pessoas trabalhavam nas minas de volfrâmio da aldeia, minério que servia a industria bélica da Segunda Guerra Mundial. O volfrâmio destinava-se ao armamento, nomeadamente para a criação de ligas metálicas resistentes a altas temperaturas. Foi uma exploração rentável durante os anos do conflito, já que este era um minério essencial à indústria da guerra. Salazar permitia simultaneamente a venda do minério aos aliados e aos Alemães e, por isso, Portugal esteve na iminência de sofrer um golpe de estado patrocinado pelos Ingleses.]
[Sem segurança, os mineiros seguiam caminho pelas minas e pelo pó de sílica. A inalação de veneno de quartzo permitia-lhes transformar os pulmões em pedra. Os escarros avermelhados da silicose diagnosticavam a fase terminal dessa transformação.
A espécie comestível Rumex induratus, conhecida por "azeda-dos-muros", cresce no substracto silicoso da entrada das minas — cascalheiras artificiais resultantes de anos de escavação.]
Oito pedras recusadas da Mina da Branca e dez pedras recusadas da Mina da Escadavada.
[É fácil perceber os locais de exploração de volfrâmio da aldeia. Junto às minas existem sempre grandes quantidades de pedras. Estas pedras rejeitadas (as que não serviram a guerra) formam, agora, montes e marcos sinalizadores. Na Mina da Branca as pedras são mais claras, enquanto que na Mina da Escadavada têm um tom avermelhado, provavelmente contaminadas pelo solo.]
[Quando as processionárias saíram, os pardais aproveitaram o abrigo.]
[António de Figueiredo, mais conhecido por Pólvora, é filho de José Maria de Figueiredo. Tem uma roulote na entrada da aldeia onde faz as melhores bifanas de Trás-os-Montes.
O seu pai foi um dos homens mais ricos da região. Foi negociante de volfrâmio durante a Segunda Guerra Mundial. Vendia o minério aos aliados e aos Alemães, que o vinham buscar às minas de S. Mamede de Ribatua, principalmente à mina da Branca e da Escadavada.
Era considerado um melhores caçadores da região. Ia, por vezes, à aldeia de Lagoa caçar com o Pato de Vila.
Tinha uma égua branca a qual passeava galantemente pelas aldeias de Alijó.]
Na esplanada do Pólvora havia um guarda-sol vermelho que sombreava a mesa do Zé dos Bois. Como é hábito, estava a sugar torresmos duros, retirando-lhe o sabor a sal e a óleo. Era óbvio o porquê de não os trincar. Tinha apenas três ou quatro dentes e nenhum deles molar capaz de triturar a pele frita de porco. A solução seria amolecer o pedaço na boca até ao estado gelatinoso, ação que demorava o seu tempo. Esta não só era uma estratégia para conseguir deglutir os torresmos, aquela atividade era um passatempo.
∴
Estavam aquelas nuvens baixas e arredondadas que traziam o vento cieiro gélido e tocava levemente no guarda-sol. Ninguém ligou, pois ele estava aprumado no centro da mesa de plástico que tem um orifício adaptado à forma. Quando o Zé e o Pólvora repararam no movimento do guarda-sol já era tarde demais, ele tinha levado caminho por cima da roulote e subia mais. Os dois ficaram em silêncio a olhar para aquele pássaro de ferro e tecido a subir verticalmente. Não percebiam o porquê de tamanha falta de gravidade daquele objeto, pois o vento cieiro não tem a força bruta da nortada.
∴
“Bem me eu finto!” - Ainda a mamar os torresmos, o Zé seguia o objecto a voar rapidamente a caminho do centro do povo. Talvez tenha parado e flutuava em cima do Poço da Ponte, mas já era difícil distinguir. O Pólvora olhava desconsolado o ponto vermelho ao fundo a desaparecer: “Mais um guarda-sol arrefodido”.
∴
Nada havia a fazer. Por agora, o Zé do Bois ficaria ao sol.
∴
Este era o quinto guarda-sol que levava caminho. A maior parte deles roubados de noite pois, por vezes, esquecia-se de os arrecadar dentro do espaço fechado. O Pólvora tinha um especial carinho por aquele vermelho, pois foi dos poucos objectos que trouxe do bar que teve em Angola, depois do serviço militar e do trabalho de segurança das linhas férreas perto de Lobito.
∴
O Zé já estava no último copo de tinto e já tinha terminado os dois pratos de torresmos. Ainda tinha de ir buscar o macho ao lameiro que teimava em roer o baraço e fugia para a estrada de noite. Havia de lhe colocar uma corda mais grossa, pois ficava escuro rapidamente.
∴
Já tinha pago a conta e o Pólvora lavado a louça. O Zé recuperava o casaco que estava pendurado na cadeira de plástico e surgia o momento de dizer algo entre lábios para que contassem com ele, novamente, amanhã à mesma hora para o mesmo prato e bebida. Nesse mesmo momento, espeta-se o bico do ferro do guarda-sol vermelho na mesa de plástico. Aquele objeto voador não havia regressado ao mesmo local, mas 30 centímetros ao lado, furando a mesa com a violência de quem nunca quis partir.
∴
O Zé disse que foi obra do diabo e relatou a todos a história do guarda-sol voador. Era uma testemunha fiável e entusiasmada.
Enquanto ele explicava o sucedido, eu especulava em desenho o voo do guarda-sol.
Três árvores domesticadas
ALFABETO DE ALCUNHAS DE SÃO MAMEDE DE RIBATUA
Lista de alcunhas dos habitantes de S. Mamede de Ribatua inventariada por Miguel Cartageno.
A lista foi lida, em ordem alfabética, por Letícia Carvalho e Ana Rita Taveira, as últimas crianças que frequentaram a pré-primária da aldeia.
A
Abêboras / Abílio Guarda Rios / Acácio Parreiras / Adelaidinha do Bilhar / Agostinho Carroças / Água-benteiro / Albanos / Alcina Maneta / Alminha / Alvaro Dança / Americano / Ana Grande / Ana Má / Anjo Branco / António Júlio Sapateiro / António Maluco / Armazém / Aurora Turra
B
Badolas / Baleia de Cheires / Barqueiros / Batata / Batateiros / Beiçudo / Benairo / Bia / Bicha-cega / Bichadas / Bico / Bicodinho / Bigodes / Biólas / Bisonte / Bixa á cu / Boca de Sapo / Bochechas / Bolico / Bombas / Bombinho / Bota a Baixo / Burrão
C
Cá-te-espero / Cachispo / Caçoilas / Caçoto / Caga Sala / Calca a Terra / Calça Branca / Cambito / Camboto / Candedos / Candongas / Cantador / Capitão Gancho / Cara / Caralhinho / Cardeal / Carlos Bronze / Carlos da Arlete / Carocha / Carolino Toca o Bombo / Carva / Cavalo Branco / Cento e dez / Cerca-á-Reca / Chalrrim / Chamarré / Chamorra / Chanata / Chapéu Branco / Charló / Chata / Ché / Chibo / Chicharro / Chicholina / Chora / Chuna / Cidrorrego / Cinco Croas / Cinquenta gramas / Cóco / Cóço-cu / Cona Gorda / Coneiro / Cop Kone / Cornélia / Cowboy / Cu Estorrado / Cúco
D
Damasqueiro / Daniel Profissional / Das Eiras / Dirceu Borboleta / Doutor Rabaças
E
Eduardo Coveiro / Emília Pedreira / Engenheiro / Espanhol / Estrondado
F
Facadas / Falor / Fanoia / Faroleiro / Faroto / Farrucos / Fás Santos / Fávia / Feijoca / Fernanda Cagada / Fernando do Poço / Fidalgo / Figota / Fino / Flora Enxo / Flora Mijona / Flora zota / Foguete / Foice / Foreta / Fusco
G
Gaio / Garrafão / Gata Borralheira / Gato Preto / Gigantona / Grilo / Guarda Rios
I
Igreja Velha / Índio
J
Jarusa / Jiló / João Caiador / João da Carcuda / João da Rua / João das Gatas / João Inglês / João Nabudo / João Pequeno / João Pionas / João Tamilão / Joia / Joaninha / Joaquim Mula / Juiz da / Montanha / Júlio Manco
L
Lafarda / Landea / Lapouço / Laranjinha / Lascarim / Latareo / Latas / Latoeiro / Lebre / Lebre / Leirão / Levezinho / Lidia Peluda / Lidia Pontes / Limoeiro / Lisboa / Lobo / Loja Nova / Lota / Lucas / Luís Alemão / Lulu
M
Macau / Madeirense / Maeio / Mamã / Manelzinho do Pontão / Manuel Brasileiro / Manuel da loja / Manuel Francês / Maria da Serra / Marinheiro / Mário Sacristão / Marisqueira / Maroncha / Marquinhas Esperta / Matula / Meliana / Melro / Melro Preto / Menigite / Menina da Caveira / Menino Jesus / Menjerico / Merandeiro / Metildes / Minhoca / Minhoto / Mocho / Moleiro / Montesinho / Montesinho / Morraco / Morto Vivo / Mosaico
N
Navio sem Patas / Necas / Nequinho / Nineta
P
Padiolas / Padre Zé / Panelas / Pantelha / Papa Ranhos / Pascácio / Patacas / Patalarga / Pavão / Pedreiro / Pedro Mestre da Música / Pejigo / Penajóia / Pernambuco / Pincha o figo / Pinta / Pintassilgo / Pirata / Piruças / Pirucha / Pita / Pitó / Pólvora / Pouca Roupa / Pólvora / Pragana / Préstes / Prêta / Prilhoa / Punheta
Q
Quarenta e três / Queima Comboios
R
Raio / Rajá / Ramalhete / Raposa / Rata / Ratão / Rato / Ráu / Rebimba / Reco Russo / Redondo / Regador / Rei Preto / Repolho / Resina / Resineiro / Respeitador / Revolver / Rilha Cacos / Rolo da Fieiteira / Romilau / Rosinha / Russo
S
Salsichas / Salú / Sangue Azul / Santinhas / Santo Mamede / Sapas / Savedra / Seara / Ségio Funfa a coisa / Sembixa / Senísgo / Serôdio / Shevaine / Sicui / Siné / Sóbrechas / Soldado de Bronze/ Soneto / Soquinha / Surrão
T
Terrível / Tibi / Tó Gandula / Tomba lá Pipa / Tomba o Milho / Tona / Topa / Trinca a Espinha / Triste
V
Vai de Vagar / Valha-me Deus / Vareta / Vazelho / Vermelhão / Victor Copos / Victor Gato / Violenta / Viúva / Vivinha
X
Xaronda / Xum
Z
Zaquir / Zé da Bola / Zé do Pitos / Zé dos Bois / Zé duas Vezes / Zé Maria Bamba / Zé Moutinho / Zé Picinhas / Zé Quiosque / Zé Quiosque / Zé-da-Calçada / Zeca Maluco / Zilda-do-cu-medonho / Zilrro / Zobaida / Zumbeco / Zurro
[No dia 20 de Agosto de 1983 o autocarro que levava a Banda Filarmónica de S. Mamede de Ribatua à aldeia de Lagoa caiu ao rio Sabor. Nesse acidente morreu Jaime Pinto e o seu instrumento era o Fliscorne.]
[No trilho que vai para a Califórnia, em cima do ribeiro, existe uma série de pedras empilhadas que parecem terem sido escavadas manualmente. Alguns orifícios parecem pequenos armários e depósitos, pequenas prateleiras ovais para guardar.]
Diário de bordo
ANO YEAR · 2022
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA ARTISTIC RESIDENCE · Ci.CLO
LOCAL LOCATION · S. Mamede de RIbatua, Vila Real, PORTUGAL
AGRADECIMENTOS SPECIAL THANKS ·
Maria João Ruivo, André Tribbense, Patrícia Geraldes, Virgílio Ferreira, Gabriela Vaz-Pinheiro, Jayne Dyer, Jon Arne Mogstad, Marta Huet Rocha, Beatriz Almeida, Ana Guimarães, José Eduardo, Sandra Borges, António Figueiredo, Miguel Cartageno, José Serôdio, António Taveira, Manuela Ligeiro, Sara Mateus, Mario jorge Vaz, Mafalda mendes, LuÍs lameiras, Padre álvaro veloso, Raquel carvalho, andreia ribeiro, João Cruz, Celestina Marinho, Letícia Carvalho, Ana Rita Taveira, junta freguesia de são mamede de ribatua.
e AND
Banda Filarmónica Philharmonic Band ·
Pedro Pinto E Ramiro Morais [percussão PERCUSSION], António Mateus [pratos PLATES], Ana Borges [clarinete CLARINET], Rui Cardoso e Pedro Santos [trompete trumpet], Ricardo Seixas e António Leite - presidente da banda [trombone], Maria de Fátima e Cláudia Lopes [tuba], Filipa Carvalho [flauta flute], Beatriz Martins [oboé oboe], António VIEIRA [trompa horn], Daniel Cartageno e Rui Leal - maestro [saxofone saxophone], Bar da Banda.
“Chamar à pedra, Fraga” é o nome dado ao projeto desenvolvido na aldeia de São Mamede de Ribatua, no município de Alijó, durante a residência artística Vivificar, promovida pela plataforma de fotografia Ciclo, dedicada à construção de diálogos com a comunidade local e o território através de práticas artísticas contemporâneas.
A expressão “chamar à pedra” é uma forma de dizer antiga utilizada, em ambiente escolar, quando um professor queria chamar um aluno ao quadro para realizar um exercício. A pedra é, neste contexto, aquilo a que popularmente conhecemos por ardósia ou lousa negra, um tipo particular de xisto argiloso. Uma “fraga”, por sua vez, é uma rocha escarpada, uma pedra de grande dimensões, normalmente associada a um lugar identitário. Há uma ironia implícita em chamar a uma pedra "fraga", em dignificar um elemento tão pequeno, aparentemente insignificante e trivial como uma pedra.
Estes dois conceitos (“escola” e “pedra”) que dão corpo ao título do projeto, são reveladores do trabalho que nasceu da imersão em São Mamede de Ribatua e na sua comunidade. Interessou-me, desde logo, estabelecer ligações entre este território e os interesses gerais da minha prática procurando pontos de encontro e de tensão entre a documentação, a ficção, a contemplação e a abstracção, que pudessem criar novas reflexões e narrativas sobre a aldeia.
“Chamar à pedra, Fraga” é um estudo pessoal e crítico de reconhecimento de S. Mamede de Ribatua, que partiu de uma "arqueologia ficcional" para analisar a relação entre o mundo humano (a memória, a ferramenta, a paisagem construída), o mundo mineral (a pedra e a água) e o vegetal (que nutre e sustenta), e as implicações que estes têm uns nos outros.
[A Barragem do Tua, inaugurada em 2011, teve um impacto significativo na aldeia o que não invalidou o surgimento de outros volumes e possibilidades.]
[Em 2020, a aldeia esteve 30 dias sob nevoeiro cerrado. Alguns acusam o aumento da humidade devido à subida das águas do rio provocada pela barragem, mas os mais velhos desmentem. A frequência do nevoeiro é a mesma, principalmente na iminência de vento cieiro no inverno. O que difere é a sua intensidade mais severa. Agora ele é mais espesso, mais opaco.]
[Há uma pequena porção de terra no meio do rio, junto ao laranjal da Califórnia. Esta ilha foi formada pela subida das águas.
Se lhe for permitido o isolamento contínuo, terá um ecossistema próprio.]
[Os peixes nativos como o barbo ou as bogas foram substituídos pelos lúcios e pelas percas, espécies predadoras que não se importam com a ausência de luz no fundo do rio.]
[O caminho até ao laranjal da Califórnia.]
[As mangueiras de elastómero termoplástico usadas para o regadio das laranjeiras vão da aldeia até às encostas do rio. São quilómetros de tubo que viajam pela superfície. Em alguns locais podem-se encontrar pedaços derretidos, objectos escultóricos que resultam do corte e da conexão, a quente, entre tubos.]
Depósitos geométricos para água — paralelepípedo | cone | cilindro
[A vertigem visual e sonora da barragem do Tua permitirá o “salto mortal” para o jacto de água em baixo onde o caudal antigo e o final da linha do Tua ainda são visíveis.
Na turbina — núcleo da máquina total — a água comprimida atravessa com violência provocando pequenos tremores de terra. Neste espaço, ainda sem história, identidade ou referências, há um ritmo e um som rudimentar que reconheço mesmo sem os ter alguma vez ouvido.]
[Na década de 30 e 40, milhares de pessoas trabalhavam nas minas de volfrâmio da aldeia, minério que servia a industria bélica da Segunda Guerra Mundial. O volfrâmio destinava-se ao armamento, nomeadamente para a criação de ligas metálicas resistentes a altas temperaturas. Foi uma exploração rentável durante os anos do conflito, já que este era um minério essencial à indústria da guerra. Salazar permitia simultaneamente a venda do minério aos aliados e aos Alemães e, por isso, Portugal esteve na iminência de sofrer um golpe de estado patrocinado pelos Ingleses.]
[Sem segurança, os mineiros seguiam caminho pelas minas e pelo pó de sílica. A inalação de veneno de quartzo permitia-lhes transformar os pulmões em pedra. Os escarros avermelhados da silicose diagnosticavam a fase terminal dessa transformação.
A espécie comestível Rumex induratus, conhecida por "azeda-dos-muros", cresce no substracto silicoso da entrada das minas — cascalheiras artificiais resultantes de anos de escavação.]
Oito pedras recusadas da Mina da Branca e dez pedras recusadas da Mina da Escadavada.
[É fácil perceber os locais de exploração de volfrâmio da aldeia. Junto às minas existem sempre grandes quantidades de pedras. Estas pedras rejeitadas (as que não serviram a guerra) formam, agora, montes e marcos sinalizadores. Na Mina da Branca as pedras são mais claras, enquanto que na Mina da Escadavada têm um tom avermelhado, provavelmente contaminadas pelo solo.]
[Quando as processionárias saíram, os pardais aproveitaram o abrigo.]
[António de Figueiredo, mais conhecido por Pólvora, é filho de José Maria de Figueiredo. Tem uma roulote na entrada da aldeia onde faz as melhores bifanas de Trás-os-Montes.
O seu pai foi um dos homens mais ricos da região. Foi negociante de volfrâmio durante a Segunda Guerra Mundial. Vendia o minério aos aliados e aos Alemães, que o vinham buscar às minas de S. Mamede de Ribatua, principalmente à mina da Branca e da Escadavada.
Era considerado um melhores caçadores da região. Ia, por vezes, à aldeia de Lagoa caçar com o Pato de Vila.
Tinha uma égua branca a qual passeava galantemente pelas aldeias de Alijó.]
Na esplanada do Pólvora havia um guarda-sol vermelho que sombreava a mesa do Zé dos Bois. Como é hábito, estava a sugar torresmos duros, retirando-lhe o sabor a sal e a óleo. Era óbvio o porquê de não os trincar. Tinha apenas três ou quatro dentes e nenhum deles molar capaz de triturar a pele frita de porco. A solução seria amolecer o pedaço na boca até ao estado gelatinoso, ação que demorava o seu tempo. Esta não só era uma estratégia para conseguir deglutir os torresmos, aquela atividade era um passatempo.
∴
Estavam aquelas nuvens baixas e arredondadas que traziam o vento cieiro gélido e tocava levemente no guarda-sol. Ninguém ligou, pois ele estava aprumado no centro da mesa de plástico que tem um orifício adaptado à forma. Quando o Zé e o Pólvora repararam no movimento do guarda-sol já era tarde demais, ele tinha levado caminho por cima da roulote e subia mais. Os dois ficaram em silêncio a olhar para aquele pássaro de ferro e tecido a subir verticalmente. Não percebiam o porquê de tamanha falta de gravidade daquele objeto, pois o vento cieiro não tem a força bruta da nortada.
∴
“Bem me eu finto!” - Ainda a mamar os torresmos, o Zé seguia o objecto a voar rapidamente a caminho do centro do povo. Talvez tenha parado e flutuava em cima do Poço da Ponte, mas já era difícil distinguir. O Pólvora olhava desconsolado o ponto vermelho ao fundo a desaparecer: “Mais um guarda-sol arrefodido”.
∴
Nada havia a fazer. Por agora, o Zé do Bois ficaria ao sol.
∴
Este era o quinto guarda-sol que levava caminho. A maior parte deles roubados de noite pois, por vezes, esquecia-se de os arrecadar dentro do espaço fechado. O Pólvora tinha um especial carinho por aquele vermelho, pois foi dos poucos objectos que trouxe do bar que teve em Angola, depois do serviço militar e do trabalho de segurança das linhas férreas perto de Lobito.
∴
O Zé já estava no último copo de tinto e já tinha terminado os dois pratos de torresmos. Ainda tinha de ir buscar o macho ao lameiro que teimava em roer o baraço e fugia para a estrada de noite. Havia de lhe colocar uma corda mais grossa, pois ficava escuro rapidamente.
∴
Já tinha pago a conta e o Pólvora lavado a louça. O Zé recuperava o casaco que estava pendurado na cadeira de plástico e surgia o momento de dizer algo entre lábios para que contassem com ele, novamente, amanhã à mesma hora para o mesmo prato e bebida. Nesse mesmo momento, espeta-se o bico do ferro do guarda-sol vermelho na mesa de plástico. Aquele objeto voador não havia regressado ao mesmo local, mas 30 centímetros ao lado, furando a mesa com a violência de quem nunca quis partir.
∴
O Zé disse que foi obra do diabo e relatou a todos a história do guarda-sol voador. Era uma testemunha fiável e entusiasmada.
Enquanto ele explicava o sucedido, eu especulava em desenho o voo do guarda-sol.
Três árvores domesticadas
ALFABETO DE ALCUNHAS DE SÃO MAMEDE DE RIBATUA
Lista de alcunhas dos habitantes de S. Mamede de Ribatua inventariada por Miguel Cartageno.
A lista foi lida, em ordem alfabética, por Letícia Carvalho e Ana Rita Taveira, as últimas crianças que frequentaram a pré-primária da aldeia.
A
Abêboras / Abílio Guarda Rios / Acácio Parreiras / Adelaidinha do Bilhar / Agostinho Carroças / Água-benteiro / Albanos / Alcina Maneta / Alminha / Alvaro Dança / Americano / Ana Grande / Ana Má / Anjo Branco / António Júlio Sapateiro / António Maluco / Armazém / Aurora Turra
B
Badolas / Baleia de Cheires / Barqueiros / Batata / Batateiros / Beiçudo / Benairo / Bia / Bicha-cega / Bichadas / Bico / Bicodinho / Bigodes / Biólas / Bisonte / Bixa á cu / Boca de Sapo / Bochechas / Bolico / Bombas / Bombinho / Bota a Baixo / Burrão
C
Cá-te-espero / Cachispo / Caçoilas / Caçoto / Caga Sala / Calca a Terra / Calça Branca / Cambito / Camboto / Candedos / Candongas / Cantador / Capitão Gancho / Cara / Caralhinho / Cardeal / Carlos Bronze / Carlos da Arlete / Carocha / Carolino Toca o Bombo / Carva / Cavalo Branco / Cento e dez / Cerca-á-Reca / Chalrrim / Chamarré / Chamorra / Chanata / Chapéu Branco / Charló / Chata / Ché / Chibo / Chicharro / Chicholina / Chora / Chuna / Cidrorrego / Cinco Croas / Cinquenta gramas / Cóco / Cóço-cu / Cona Gorda / Coneiro / Cop Kone / Cornélia / Cowboy / Cu Estorrado / Cúco
D
Damasqueiro / Daniel Profissional / Das Eiras / Dirceu Borboleta / Doutor Rabaças
E
Eduardo Coveiro / Emília Pedreira / Engenheiro / Espanhol / Estrondado
F
Facadas / Falor / Fanoia / Faroleiro / Faroto / Farrucos / Fás Santos / Fávia / Feijoca / Fernanda Cagada / Fernando do Poço / Fidalgo / Figota / Fino / Flora Enxo / Flora Mijona / Flora zota / Foguete / Foice / Foreta / Fusco
G
Gaio / Garrafão / Gata Borralheira / Gato Preto / Gigantona / Grilo / Guarda Rios
I
Igreja Velha / Índio
J
Jarusa / Jiló / João Caiador / João da Carcuda / João da Rua / João das Gatas / João Inglês / João Nabudo / João Pequeno / João Pionas / João Tamilão / Joia / Joaninha / Joaquim Mula / Juiz da / Montanha / Júlio Manco
L
Lafarda / Landea / Lapouço / Laranjinha / Lascarim / Latareo / Latas / Latoeiro / Lebre / Lebre / Leirão / Levezinho / Lidia Peluda / Lidia Pontes / Limoeiro / Lisboa / Lobo / Loja Nova / Lota / Lucas / Luís Alemão / Lulu
M
Macau / Madeirense / Maeio / Mamã / Manelzinho do Pontão / Manuel Brasileiro / Manuel da loja / Manuel Francês / Maria da Serra / Marinheiro / Mário Sacristão / Marisqueira / Maroncha / Marquinhas Esperta / Matula / Meliana / Melro / Melro Preto / Menigite / Menina da Caveira / Menino Jesus / Menjerico / Merandeiro / Metildes / Minhoca / Minhoto / Mocho / Moleiro / Montesinho / Montesinho / Morraco / Morto Vivo / Mosaico
N
Navio sem Patas / Necas / Nequinho / Nineta
P
Padiolas / Padre Zé / Panelas / Pantelha / Papa Ranhos / Pascácio / Patacas / Patalarga / Pavão / Pedreiro / Pedro Mestre da Música / Pejigo / Penajóia / Pernambuco / Pincha o figo / Pinta / Pintassilgo / Pirata / Piruças / Pirucha / Pita / Pitó / Pólvora / Pouca Roupa / Pólvora / Pragana / Préstes / Prêta / Prilhoa / Punheta
Q
Quarenta e três / Queima Comboios
R
Raio / Rajá / Ramalhete / Raposa / Rata / Ratão / Rato / Ráu / Rebimba / Reco Russo / Redondo / Regador / Rei Preto / Repolho / Resina / Resineiro / Respeitador / Revolver / Rilha Cacos / Rolo da Fieiteira / Romilau / Rosinha / Russo
S
Salsichas / Salú / Sangue Azul / Santinhas / Santo Mamede / Sapas / Savedra / Seara / Ségio Funfa a coisa / Sembixa / Senísgo / Serôdio / Shevaine / Sicui / Siné / Sóbrechas / Soldado de Bronze/ Soneto / Soquinha / Surrão
T
Terrível / Tibi / Tó Gandula / Tomba lá Pipa / Tomba o Milho / Tona / Topa / Trinca a Espinha / Triste
V
Vai de Vagar / Valha-me Deus / Vareta / Vazelho / Vermelhão / Victor Copos / Victor Gato / Violenta / Viúva / Vivinha
X
Xaronda / Xum
Z
Zaquir / Zé da Bola / Zé do Pitos / Zé dos Bois / Zé duas Vezes / Zé Maria Bamba / Zé Moutinho / Zé Picinhas / Zé Quiosque / Zé Quiosque / Zé-da-Calçada / Zeca Maluco / Zilda-do-cu-medonho / Zilrro / Zobaida / Zumbeco / Zurro
[No dia 20 de Agosto de 1983 o autocarro que levava a Banda Filarmónica de S. Mamede de Ribatua à aldeia de Lagoa caiu ao rio Sabor. Nesse acidente morreu Jaime Pinto e o seu instrumento era o Fliscorne.]
[No trilho que vai para a Califórnia, em cima do ribeiro, existe uma série de pedras empilhadas que parecem terem sido escavadas manualmente. Alguns orifícios parecem pequenos armários e depósitos, pequenas prateleiras ovais para guardar.]
Diário de bordo
ANO YEAR · 2022
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA ARTISTIC RESIDENCE · Ci.CLO
LOCAL LOCATION · S. Mamede de RIbatua, Vila Real, PORTUGAL
AGRADECIMENTOS SPECIAL THANKS ·
Maria João Ruivo, André Tribbense, Patrícia Geraldes, Virgílio Ferreira, Gabriela Vaz-Pinheiro, Jayne Dyer, Jon Arne Mogstad, Marta Huet Rocha, Beatriz Almeida, Ana Guimarães, José Eduardo, Sandra Borges, António Figueiredo, Miguel Cartageno, José Serôdio, António Taveira, Manuela Ligeiro, Sara Mateus, Mario jorge Vaz, Mafalda mendes, LuÍs lameiras, Padre álvaro veloso, Raquel carvalho, andreia ribeiro, João Cruz, Celestina Marinho, Letícia Carvalho, Ana Rita Taveira, junta freguesia de são mamede de ribatua.
e AND
Banda Filarmónica Philharmonic Band ·
Pedro Pinto E Ramiro Morais [percussão PERCUSSION], António Mateus [pratos PLATES], Ana Borges [clarinete CLARINET], Rui Cardoso e Pedro Santos [trompete trumpet], Ricardo Seixas e António Leite - presidente da banda [trombone], Maria de Fátima e Cláudia Lopes [tuba], Filipa Carvalho [flauta flute], Beatriz Martins [oboé oboe], António VIEIRA [trompa horn], Daniel Cartageno e Rui Leal - maestro [saxofone saxophone], Bar da Banda.