Aquele charco em Agosto, nem para sapos tem caudal, mas quando chove em Janeiro mais que o planeado, as pencas e nabiças morrem afogadas na torrente esverdeada.
∴
As marcas nas fragas do rio que estabelecem os limites do ano passado, há muito que foram ultrapassadas. Não se reconhece o poço da Garganta. Estão submersas todas as pedras arredondadas que lhe dão o nome.
As oliveiras têm as raízes empapadas. Este ano, só darão azeitona grande e grossa mas não vão render como de costume. Talvez as alcaparras se safem.
Se há flora com rudeza suficiente para suportar intempéries babilônicas é esta besta de árvore que manda as raízes para as profundezas e agarra-se à terra com a violência de quem exige viver milhares de anos. A pomba de Noé não trouxe à arca uma folha de carvalho.
∴
O Chicheiro segador andava por ali com a filha na mula. Vinham de Mogadouro ver o amendoal e o olival que lhes pertencia junto aos Calveiros. A mula já tinha os cascos dentro de água e a garota lá se ia mantendo enxuta.
Alguns zimbros, estevas e um tronco de amieiro vinham a descer com a corrente. O tronco encostou-se à pata traseira da mula parada que a fez andar para a frente e levar uma vergastada do Chicheiro. O vento punha-se pior.
∴
A tia Páscoa, com o lenço azul agarrado à cabeça, andava por ali também a ver o que sobrava do seu horto. As nabiças andavam a bailar com as folhas de grelo junto às alfaces de inverno. O cebolo não se via e as estacas dos futuros tomates tinham tomado caminho. Só se safaram as cabaças agarradas àqueles cabos grossos e verdes que levam às raízes.
Depois de vender os terrenos ao Sousinha, antes da aventura por África, a tia apenas ficou com aquele pedaço de terra que agora pertence ao rio.
Não bastava à desgraçada voltar à pátria apenas com a roupa do corpo encardida daquela terra vermelha, ouvir do povo as desconsiderações de quem voltou com nada e ainda tinha de levar com o desdém daquele rio selvagem que sempre lhe curou as feridas quando garota.
∴
“Eu nunca tratei mal os pretos...”, dizia a Páscoa, presumindo que a desgraça vinha do troco da sentença divina, “... mas eles trabalhavam pouco, coitaditos”.
A Beatriz do Sousinha era a mais impiedosa nos comentários. Não fazia a mínima noção do que se havia passado nas colónias, mas boas ideias não lhe faltavam.
Veio dizer para o povo que a Páscoa tinha um batalhão de pretos na fazenda, e por os tratar tão mal, teve de apressar, e muito, a fugida.
∴
Um dia, a descascar chícharos na loja da Ana do Baixo, um grupo de mulheres da Biquinha desenferrujava a língua para render o trabalho de mãos.
Claro que a Páscoa aguardava o comentário da Beatriz sobre o assunto, que até ali parecia tabú. Mal a zombeteira falou nos coitaditos dos pretos, a Páscoa levantou a nalga, dando um descomunal peido e exclamando: “Bons ventos te levem, disse a meu peido, antes de deixá-lo partir.”
∴
Toda a gente estranhou que tal som pudesse sair de um ânus. O diabo da mulher devia ter acumulado todas as ventosidades de uma vida e estava agora a libertar-se em todo o seu esplendor.
Toda a gente sabia que tal estrondo, apesar de não ter destino certo, tinha origem na Páscoa e só poderia ter como alvo a boca larga da Beatriz. Ela própria o soube. Levantou-se, arramou o caçoilo com os chícharos e foi para casa.
Vingança poética de quem tem apenas os restos da refeição para oferecer, a quem tantos comentários indecentes lhe tem dado.
A Cidália, de tanto se rir, molhou as rendas do escano.
∴
A Páscoa, por vezes, conta histórias da África. Teve três filhos naquela terra vermelha e quente. Foi vida de trabalho duro e o fado não ajudou. O Jacinto morreu-lhe mesmo antes da turbulência da volta.
Tinha doze anos e era esperto, o garoto. Quando começavam as primeiras histórias sobre catanas em patrões brancos, de olhos esbugalhados e com o sotaque de quem é garoto mistura, disse-lhe: “Vamos embora minha mãe, que os pretos nos matam.”
Quinze dias depois, um camião das obras topou-lhe a vesícula e ali ficou estendido.
Ironia do destino só lá ficar ele.
∴
O Manel mão de cabra é um alma do diabo. É o mais velho e a quem calha sempre os encargos mais complicados. Nasceu lá e dizia que lá morria, mas teve de voltar só com uma muda de roupa.
De maneira a conseguir o respeito dos outros garotos da aldeia, tentava as maiores façanhas. Montava a burra do Zé Casemiro de pé, tocava a rebate de incêndio o sino da igreja em pleno Janeiro, prendia a maior latada na cauda dos gatos, atirava-se da fraga mais alta do poço Belchior só para a aprovação geral. E tinha-a, mas com ela veio a alcunha.
Em Agosto, na vinda das festividades para os emigrantes, o povo amotinava-se junto à fonte, perto da igreja. O Pardal, o macho do tio Amâncio, bebia no tanque da fonte e preparava-se para se espojar na terra para espantar moscardos impertinentes. Aquele macho era conhecido por apenas respeitar o dono. Respeitar, no sentido de o reconhecer como a entidade de duas patas que lhe fornece a palha e o caçoilo com o resto das verduras que sobram das refeições e nada mais. O tio Amâncio comprou a besta em Izeda a um cigano que o fez a bom preço para instrumento de trabalho. Só tinha de decorar o caminho e, todos os dias, ir à corriça levar os cântaros vazios e trazê-los cheios de leite, ainda morno, das cabras do Zé Frade.
Enquanto o animal sacudia-se do excesso de terra e pó, o Manel num salto de duas pernas, coloca-se no lombo do animal que, assustado, dá um coice no ar. Como não tinha a albarda, nem apoios a não ser a crina, o Manel cai com os costelos no chão. Não satisfeito com a façanha de cavalo selvagem e já ter provocado a risota aos presentes, com o peso e força de animal bruto, pisa-o na mão direita com o casco. A força foi tanta que três dedinhos soltaram-se do resto do corpo: médio, anelar e mindinho.
Diz quem lá estava, que o Pardal, enquanto o Manel gritava de dor e segurava o toco pelo pulso, olhava fixamente para o enfermo e arfava de raiva, babando-se enquanto batia com o casco no chão.
Sem pia, baptizou-se ali mesmo, o Manel mão de cabra, detentor de indicador e polegar.
∴
A filha da Páscoa, apadrinhada por uma comadre mais folgada, dedicou-se ao ensino. Diz a Páscoa que a Érica era a mais brutinha, talvez por se ter dedicado a jurar fidelidade ao Senhor nas Carmelitas.
Lembro-me de lá ir em visita com a tia Luísa. Esperávamos num banco de madeira em frente a umas grades de ferro que dividiam os espaços. A clausura daquela mulher bonita não era natural. Trazia sempre um saco de hóstias para mim. Dizia que era o corpo de Deus e que os meninos deviam comer sem trincar. Esperava sempre que eu abrisse o pacote para confirmar o derretimento do pedaço de corpo no céu da minha boca.
A tia Luísa também gostava de as comer, mas evitava para não ter que retirar a placa para a respectiva limpeza.
∴
Esteve pura, Carmelita e de pés descalços durante cinco anos. Parece que depois de chegar dos seus afazeres de professora, ainda tinha as tarefas internas dadas pela madre superior que acreditava não serem funções a mais.
Diz a Páscoa que ela fartou-se e mandou-as dar uma volta. “Elas são casadas com Deus, mas governam-se bem”, dizia.
Mal saiu da clausura, casou-se.
∴
A tia Páscoa ainda vivia na mesma casa desde o retorno. Um corredor comprido entre os palheiros, onde o Artur tinha o lagar. O marido, o Pai Nosso, tinha aquele jeito engraçado e poético de se rir da própria desgraça e dizia: “Comprei uma casa na avenida, nem tem porta nem saída”.
A casa tinha tantos buracos que, certo dia, deixaram o bico do gás ligado o dia inteiro e quando chegaram, a botija estava vazia e não cheirava a gás. Ria-se o Pai Nosso a contar ao pastor Bobo: “Com esta casa, Deus não nos quer inda”.
∴
O tio Pai Nosso tinha as mãos desproporcionais ao corpo. Eram mãos inchadas, amarelas e castanhas, habituadas às ancestrais cuspidelas antes de agarrar ferramentas do campo. As unhas espessas e longas guardavam a terra das jeiras que ia fazendo para os fidalgos da aldeia.
Para as visitas, tinha sempre aquele mata-borrão mestizo, da pipa velha. Toda a gente bebia do mesmo copo e nunca foi lavado.
Era homem capaz de comer 300 pardais estufados no panelo. Tinha o vício da caça nocturna com arma de chumbos e lanterna. A tia nem lhes topava. Dizia que só tinham osso e cabeça. Ele não se importava de chuchar ossos e arrefoder meio trigo no molho de cebola e tomate que se fazia ao lume. Em dia de caça nocturna, havia sempre fartura diurna.
∴
No rio, o Chicheiro afastara-se um pouco da garota e fiscalizava se alguma cabra tinha andado a rapar as saias das bicais. Tinha colocado uma cinta de silvas em redor do tronco para não permitir petiscos às mais caturras.
Só a mula reparou que as suas patas estavam agora submersas e, por isso, mantinha-se inquieta. O céu ficou ainda mais negro.
∴
Começava a cair uma chuva miudinha e, em crescendo, uma saraivada ruidosa.
∴
Ao longe, a Páscoa tinha andado ao rebusco no seu próprio horto. Tinha o balde cheio do que salvou e escondeu-se em baixo da fraga protegida das pedras brancas que caíam. De cima já vinha um pequeno ribeiro que desaguava no maior, em baixo. Era já difícil ver o outro lado do rio.
O Chicheiro lá tentava voltar à pressa para a garota que se protegia mal em baixo de um carrasco. Com a pressa, o lapouço do homem escorrega numas pedras redondas. Se estava molhado da saraivada, agora está ensopado e decide dar a volta à fraga e subir um pouco. Com a corrente assim é custoso. Decide parar e agarrar-se.
A mula começa a andar lentamente a favor da corrente. A garota chama pelo pai, aflita.
Começa a cair o céu em pequenas pedras brancas. A Páscoa já está com as duas mãos agarradas à fraga. O balde do rebusco já tomou caminho. O ribeiro que vinha de cima da estrada, tomou-se de enxurrada.
Ao longe, a Páscoa vê o Chicheiro com a água pela cinta agarrado à fraga fazendo sinais para a garota levar a mula para cima, onde é mais seguro, mas a mula já tinha tomado essa decisão de subir a ladeira. Lentamente, e com a garota agarrada ao pescoço do animal, vai subindo. A água já bate no depósito do animal.
As pedras brancas transformaram-se em água gelada em constante fluxo. O chicheiro foi empurrado para jusante e agarra-se a uma oliveira tentando trepar. As silvas impedem o homem de se agarrar decentemente à árvore e deixa-se levar pela corrente com a água pelo peito. Tenta nadar para a margem.
A Páscoa, que de beata tem pouco, está colada à fraga e a orações. Perdeu-se o Chicheiro de vista. A torrente tomou o rio e já não havia margens.
A mula e a garota já foram também com a corrente. Não se percebe bem a forma dos dois. Com o corpo todo no rio, a mula tem agora uma figura de pescoço e corpo de menina agarrada. A Páscoa pede socorro, mas só se pode agarrar e esperar que a corrente acalme. Já não vê viva alma.
Tudo é rio. Apenas se vislumbra uns tufos de ramos de árvore. São as copas das oliveiras que afirmam a sua gravidade. Não há sinal da mula ou da garota. Do Chicheiro, igual.
∴
A torrente passou, revelando os locais nunca invadidos pelo rio, até aquela data. À Páscoa, escondida atrás do lenço azul, só faltava o último mistério para esgotar as preces sabidas.
∴
Encontraram o corpo do Chicheiro oito dias depois junto a uns amieiros a três quilómetros de distância do horto da Páscoa. O corpo da garota e da mula não foi encontrado. Perdeu-se nos poços fundos onde nadam os lucios maiores.
Culpam sempre o rio, mas nunca ninguém culpa as margens que o aprisiona, é certo e sabido. Desta vez a corrente galgou os bordos e exigiu prémios.
∴
O corpo do Chicheiro foi à igreja e avisaram que não se podia abrir o caixão, pois o corpo havia estado dias ao sol. Mas o povo é teimoso. Abriram a caixa para testemunhar a putrefação do homem de Deus.
Teve de ir a enterrar sem receber a missa já paga. O cheiro nauseabundo inundou a igreja e o padre não estava para cerimónias aromáticas.
∴
Um ano depois morria a tia Páscoa. Uma maleita súbita corroeu-lhe o pâncreas e, de seguida, todos os órgãos vizinhos, deixando-a com o peso de uma arroba.
Como as poupanças não eram fartas, compraram o caixão mais em conta na loja do Pato de Vila. Não havia muito conteúdo a carregar.
No cemitério, a caminho da cova, como uma acção planeada, as pegas do caixão desprenderam-se uma a uma da madeira, deixando os cangalheiros com a pega na mão, excepto a do Manel mão-de-cabra que, com a sua garra, engatou na pega e não a largou. Esse desequilíbrio provocou a saída do corpo da sua mãe, coberto com o lenço azul que lhe deu protecção desde os tempos de África, e que lhe serve agora de sudário.
∴
No café da Teiga, o Pai Nosso dizia que ela acordava de noite a rezar e a gritar por causa daquele fatídico dia da enxurrada. Acordava esbaforida a perguntar se a mula tinha conseguido subir a ladeira.
A Páscoa sobreviveu à fúria do rio, mas por dentro ia apodrecendo como que ainda estivesse a boiar no rio com a garota e a mula, desde aquele dia. Na verdade, o rio reclamava agora mais um prémio.
Ano year · 2019
Local location · Lagoa, Trás-os-Montes. Portugal
Aquele charco em Agosto, nem para sapos tem caudal, mas quando chove em Janeiro mais que o planeado, as pencas e nabiças morrem afogadas na torrente esverdeada.
∴
As marcas nas fragas do rio que estabelecem os limites do ano passado, há muito que foram ultrapassadas. Não se reconhece o poço da Garganta. Estão submersas todas as pedras arredondadas que lhe dão o nome.
As oliveiras têm as raízes empapadas. Este ano, só darão azeitona grande e grossa mas não vão render como de costume. Talvez as alcaparras se safem.
Se há flora com rudeza suficiente para suportar intempéries babilônicas é esta besta de árvore que manda as raízes para as profundezas e agarra-se à terra com a violência de quem exige viver milhares de anos. A pomba de Noé não trouxe à arca uma folha de carvalho.
∴
O Chicheiro segador andava por ali com a filha na mula. Vinham de Mogadouro ver o amendoal e o olival que lhes pertencia junto aos Calveiros. A mula já tinha os cascos dentro de água e a garota lá se ia mantendo enxuta.
Alguns zimbros, estevas e um tronco de amieiro vinham a descer com a corrente. O tronco encostou-se à pata traseira da mula parada que a fez andar para a frente e levar uma vergastada do Chicheiro. O vento punha-se pior.
∴
A tia Páscoa, com o lenço azul agarrado à cabeça, andava por ali também a ver o que sobrava do seu horto. As nabiças andavam a bailar com as folhas de grelo junto às alfaces de inverno. O cebolo não se via e as estacas dos futuros tomates tinham tomado caminho. Só se safaram as cabaças agarradas àqueles cabos grossos e verdes que levam às raízes.
Depois de vender os terrenos ao Sousinha, antes da aventura por África, a tia apenas ficou com aquele pedaço de terra que agora pertence ao rio.
Não bastava à desgraçada voltar à pátria apenas com a roupa do corpo encardida daquela terra vermelha, ouvir do povo as desconsiderações de quem voltou com nada e ainda tinha de levar com o desdém daquele rio selvagem que sempre lhe curou as feridas quando garota.
∴
“Eu nunca tratei mal os pretos...”, dizia a Páscoa, presumindo que a desgraça vinha do troco da sentença divina, “... mas eles trabalhavam pouco, coitaditos”.
A Beatriz do Sousinha era a mais impiedosa nos comentários. Não fazia a mínima noção do que se havia passado nas colónias, mas boas ideias não lhe faltavam.
Veio dizer para o povo que a Páscoa tinha um batalhão de pretos na fazenda, e por os tratar tão mal, teve de apressar, e muito, a fugida.
∴
Um dia, a descascar chícharos na loja da Ana do Baixo, um grupo de mulheres da Biquinha desenferrujava a língua para render o trabalho de mãos.
Claro que a Páscoa aguardava o comentário da Beatriz sobre o assunto, que até ali parecia tabú. Mal a zombeteira falou nos coitaditos dos pretos, a Páscoa levantou a nalga, dando um descomunal peido e exclamando: “Bons ventos te levem, disse a meu peido, antes de deixá-lo partir.”
∴
Toda a gente estranhou que tal som pudesse sair de um ânus. O diabo da mulher devia ter acumulado todas as ventosidades de uma vida e estava agora a libertar-se em todo o seu esplendor.
Toda a gente sabia que tal estrondo, apesar de não ter destino certo, tinha origem na Páscoa e só poderia ter como alvo a boca larga da Beatriz. Ela própria o soube. Levantou-se, arramou o caçoilo com os chícharos e foi para casa.
Vingança poética de quem tem apenas os restos da refeição para oferecer, a quem tantos comentários indecentes lhe tem dado.
A Cidália, de tanto se rir, molhou as rendas do escano.
∴
A Páscoa, por vezes, conta histórias da África. Teve três filhos naquela terra vermelha e quente. Foi vida de trabalho duro e o fado não ajudou. O Jacinto morreu-lhe mesmo antes da turbulência da volta.
Tinha doze anos e era esperto, o garoto. Quando começavam as primeiras histórias sobre catanas em patrões brancos, de olhos esbugalhados e com o sotaque de quem é garoto mistura, disse-lhe: “Vamos embora minha mãe, que os pretos nos matam.”
Quinze dias depois, um camião das obras topou-lhe a vesícula e ali ficou estendido.
Ironia do destino só lá ficar ele.
∴
O Manel mão de cabra é um alma do diabo. É o mais velho e a quem calha sempre os encargos mais complicados. Nasceu lá e dizia que lá morria, mas teve de voltar só com uma muda de roupa.
De maneira a conseguir o respeito dos outros garotos da aldeia, tentava as maiores façanhas. Montava a burra do Zé Casemiro de pé, tocava a rebate de incêndio o sino da igreja em pleno Janeiro, prendia a maior latada na cauda dos gatos, atirava-se da fraga mais alta do poço Belchior só para a aprovação geral. E tinha-a, mas com ela veio a alcunha.
Em Agosto, na vinda das festividades para os emigrantes, o povo amotinava-se junto à fonte, perto da igreja. O Pardal, o macho do tio Amâncio, bebia no tanque da fonte e preparava-se para se espojar na terra para espantar moscardos impertinentes. Aquele macho era conhecido por apenas respeitar o dono. Respeitar, no sentido de o reconhecer como a entidade de duas patas que lhe fornece a palha e o caçoilo com o resto das verduras que sobram das refeições e nada mais. O tio Amâncio comprou a besta em Izeda a um cigano que o fez a bom preço para instrumento de trabalho. Só tinha de decorar o caminho e, todos os dias, ir à corriça levar os cântaros vazios e trazê-los cheios de leite, ainda morno, das cabras do Zé Frade.
Enquanto o animal sacudia-se do excesso de terra e pó, o Manel num salto de duas pernas, coloca-se no lombo do animal que, assustado, dá um coice no ar. Como não tinha a albarda, nem apoios a não ser a crina, o Manel cai com os costelos no chão. Não satisfeito com a façanha de cavalo selvagem e já ter provocado a risota aos presentes, com o peso e força de animal bruto, pisa-o na mão direita com o casco. A força foi tanta que três dedinhos soltaram-se do resto do corpo: médio, anelar e mindinho.
Diz quem lá estava, que o Pardal, enquanto o Manel gritava de dor e segurava o toco pelo pulso, olhava fixamente para o enfermo e arfava de raiva, babando-se enquanto batia com o casco no chão.
Sem pia, baptizou-se ali mesmo, o Manel mão de cabra, detentor de indicador e polegar.
∴
A filha da Páscoa, apadrinhada por uma comadre mais folgada, dedicou-se ao ensino. Diz a Páscoa que a Érica era a mais brutinha, talvez por se ter dedicado a jurar fidelidade ao Senhor nas Carmelitas.
Lembro-me de lá ir em visita com a tia Luísa. Esperávamos num banco de madeira em frente a umas grades de ferro que dividiam os espaços. A clausura daquela mulher bonita não era natural. Trazia sempre um saco de hóstias para mim. Dizia que era o corpo de Deus e que os meninos deviam comer sem trincar. Esperava sempre que eu abrisse o pacote para confirmar o derretimento do pedaço de corpo no céu da minha boca.
A tia Luísa também gostava de as comer, mas evitava para não ter que retirar a placa para a respectiva limpeza.
∴
Esteve pura, Carmelita e de pés descalços durante cinco anos. Parece que depois de chegar dos seus afazeres de professora, ainda tinha as tarefas internas dadas pela madre superior que acreditava não serem funções a mais.
Diz a Páscoa que ela fartou-se e mandou-as dar uma volta. “Elas são casadas com Deus, mas governam-se bem”, dizia.
Mal saiu da clausura, casou-se.
∴
A tia Páscoa ainda vivia na mesma casa desde o retorno. Um corredor comprido entre os palheiros, onde o Artur tinha o lagar. O marido, o Pai Nosso, tinha aquele jeito engraçado e poético de se rir da própria desgraça e dizia: “Comprei uma casa na avenida, nem tem porta nem saída”.
A casa tinha tantos buracos que, certo dia, deixaram o bico do gás ligado o dia inteiro e quando chegaram, a botija estava vazia e não cheirava a gás. Ria-se o Pai Nosso a contar ao pastor Bobo: “Com esta casa, Deus não nos quer inda”.
∴
O tio Pai Nosso tinha as mãos desproporcionais ao corpo. Eram mãos inchadas, amarelas e castanhas, habituadas às ancestrais cuspidelas antes de agarrar ferramentas do campo. As unhas espessas e longas guardavam a terra das jeiras que ia fazendo para os fidalgos da aldeia.
Para as visitas, tinha sempre aquele mata-borrão mestizo, da pipa velha. Toda a gente bebia do mesmo copo e nunca foi lavado.
Era homem capaz de comer 300 pardais estufados no panelo. Tinha o vício da caça nocturna com arma de chumbos e lanterna. A tia nem lhes topava. Dizia que só tinham osso e cabeça. Ele não se importava de chuchar ossos e arrefoder meio trigo no molho de cebola e tomate que se fazia ao lume. Em dia de caça nocturna, havia sempre fartura diurna.
∴
No rio, o Chicheiro afastara-se um pouco da garota e fiscalizava se alguma cabra tinha andado a rapar as saias das bicais. Tinha colocado uma cinta de silvas em redor do tronco para não permitir petiscos às mais caturras.
Só a mula reparou que as suas patas estavam agora submersas e, por isso, mantinha-se inquieta. O céu ficou ainda mais negro.
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Começava a cair uma chuva miudinha e, em crescendo, uma saraivada ruidosa.
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Ao longe, a Páscoa tinha andado ao rebusco no seu próprio horto. Tinha o balde cheio do que salvou e escondeu-se em baixo da fraga protegida das pedras brancas que caíam. De cima já vinha um pequeno ribeiro que desaguava no maior, em baixo. Era já difícil ver o outro lado do rio.
O Chicheiro lá tentava voltar à pressa para a garota que se protegia mal em baixo de um carrasco. Com a pressa, o lapouço do homem escorrega numas pedras redondas. Se estava molhado da saraivada, agora está ensopado e decide dar a volta à fraga e subir um pouco. Com a corrente assim é custoso. Decide parar e agarrar-se.
A mula começa a andar lentamente a favor da corrente. A garota chama pelo pai, aflita.
Começa a cair o céu em pequenas pedras brancas. A Páscoa já está com as duas mãos agarradas à fraga. O balde do rebusco já tomou caminho. O ribeiro que vinha de cima da estrada, tomou-se de enxurrada.
Ao longe, a Páscoa vê o Chicheiro com a água pela cinta agarrado à fraga fazendo sinais para a garota levar a mula para cima, onde é mais seguro, mas a mula já tinha tomado essa decisão de subir a ladeira. Lentamente, e com a garota agarrada ao pescoço do animal, vai subindo. A água já bate no depósito do animal.
As pedras brancas transformaram-se em água gelada em constante fluxo. O chicheiro foi empurrado para jusante e agarra-se a uma oliveira tentando trepar. As silvas impedem o homem de se agarrar decentemente à árvore e deixa-se levar pela corrente com a água pelo peito. Tenta nadar para a margem.
A Páscoa, que de beata tem pouco, está colada à fraga e a orações. Perdeu-se o Chicheiro de vista. A torrente tomou o rio e já não havia margens.
A mula e a garota já foram também com a corrente. Não se percebe bem a forma dos dois. Com o corpo todo no rio, a mula tem agora uma figura de pescoço e corpo de menina agarrada. A Páscoa pede socorro, mas só se pode agarrar e esperar que a corrente acalme. Já não vê viva alma.
Tudo é rio. Apenas se vislumbra uns tufos de ramos de árvore. São as copas das oliveiras que afirmam a sua gravidade. Não há sinal da mula ou da garota. Do Chicheiro, igual.
∴
A torrente passou, revelando os locais nunca invadidos pelo rio, até aquela data. À Páscoa, escondida atrás do lenço azul, só faltava o último mistério para esgotar as preces sabidas.
∴
Encontraram o corpo do Chicheiro oito dias depois junto a uns amieiros a três quilómetros de distância do horto da Páscoa. O corpo da garota e da mula não foi encontrado. Perdeu-se nos poços fundos onde nadam os lucios maiores.
Culpam sempre o rio, mas nunca ninguém culpa as margens que o aprisiona, é certo e sabido. Desta vez a corrente galgou os bordos e exigiu prémios.
∴
O corpo do Chicheiro foi à igreja e avisaram que não se podia abrir o caixão, pois o corpo havia estado dias ao sol. Mas o povo é teimoso. Abriram a caixa para testemunhar a putrefação do homem de Deus.
Teve de ir a enterrar sem receber a missa já paga. O cheiro nauseabundo inundou a igreja e o padre não estava para cerimónias aromáticas.
∴
Um ano depois morria a tia Páscoa. Uma maleita súbita corroeu-lhe o pâncreas e, de seguida, todos os órgãos vizinhos, deixando-a com o peso de uma arroba.
Como as poupanças não eram fartas, compraram o caixão mais em conta na loja do Pato de Vila. Não havia muito conteúdo a carregar.
No cemitério, a caminho da cova, como uma acção planeada, as pegas do caixão desprenderam-se uma a uma da madeira, deixando os cangalheiros com a pega na mão, excepto a do Manel mão-de-cabra que, com a sua garra, engatou na pega e não a largou. Esse desequilíbrio provocou a saída do corpo da sua mãe, coberto com o lenço azul que lhe deu protecção desde os tempos de África, e que lhe serve agora de sudário.
∴
No café da Teiga, o Pai Nosso dizia que ela acordava de noite a rezar e a gritar por causa daquele fatídico dia da enxurrada. Acordava esbaforida a perguntar se a mula tinha conseguido subir a ladeira.
A Páscoa sobreviveu à fúria do rio, mas por dentro ia apodrecendo como que ainda estivesse a boiar no rio com a garota e a mula, desde aquele dia. Na verdade, o rio reclamava agora mais um prémio.
Ano year · 2019
Local location · Lagoa, Trás-os-Montes. Portugal