A Fraga do Castelo representava o local mais proibido da aldeia. Ouvir falar da Fraga despertava ansiedade.
Para além de distante do centro da aldeia, representava perigos, penedos, poços, alturas e partes de histórias de lobos e javalis que por lá andavam.
Os adultos, a não ser pelo sentido pragmático, não se aventuravam por passeio para ajudar na curiosidade dos mais novos. Tinham ouvido as mesmas histórias quando garotos e algo se tinha vincado nas memórias de forma a reprimir qualquer visita.
“É onde os mouros andaram!”, diziam os mais velhos desdentados.
"Os mouros" é a forma simples e inocente de representar tempos mais antigos que eles próprios. A memória faz-se destas pequenas implicações e mitos. Dá-se carga negativa ao mouro e sem razão.
Diz-se que foram encontradas moedas e cerâmica. Há uma clara evidência de terras mexidas, mas o mato torna já difícil a leitura do espaço.
Em baixo fica o rio Sabor, o último rio selvagem. O local alto e claro seria de excelente qualidade de observação e atividades defensivas. É difícil perceber a escala do curso da água.
∴
As pedras cortadas em forma de navalha apontam o precipício. A vertigem é bem mais intensa que o deslumbramento da paisagem. Os passos têm de ser bem calculados. O vento, se está com demasiada força, atrasa ainda mais a passada.
Em baixo vê-se campos recentemente lavrados. A sul, o gato que é formado por oliveiras, já esteve mais definido.
Parece que as pedras estão ansiosas por se atirar ao fundo. Rebolam algum tempo, mas o voo é mais longo.
Há um certo fascínio pelo voo. Se nós não conseguimos, porque não haveríamos de ajudar outras coisas a voar?
∴
António era o querubim da tia Páscoa. Tinha pouco sentido escolar e, à falta de melhor, decidiu pedir a cabrada ao tio Zé. Eram 48 e todas elas de estômago farto.
O aspirante a pastor deu-lhe o jeito. Era já elogiado pela regra que impunha às teimosas cabras. Tinha caminhos certos e as cabras conheciam-nos.
∴
Ao contrário das ovelhas, as cabras têm uma resistência especial. Gostam de subir e descer fragas espetadas. Devem ter ainda os instintos antigos dos seus antepassados para desafiar a verticalidade do monte. Os cascos, como ganchos, engatam nas frinchas das pedras e permitem a locomoção rápida.
Não se percebe o seu gosto pelas silvas. Qual a crosta que protege a cabra dos afiados espinhos no corpo e na boca. Qual o processo complexo desenvolvido nos seus quatro depósitos que lhe permite, depois de triturada a mais dura das ervas, abrir o esfíncter e deleitar a terra com redondos presentes.
O tio Amâncio diz que “elas gostam de ir provando” e por isso são mais teimosas que as ovelhas. Quando vêem um possível petisco não se importam de sair do respectivo caminho e apanhar uma pedrada nos cornos. O tio Amâncio é especialista nas pedradas de pastor. Já cegou várias.
Lembro-me de andar com ele quando era miúdo. Uma cornuda, em duas patas, beliscava uns ramos de oliveira. O tio Amâncio, enquanto praguejava, lançou à pastor uma pedra xistosa em forma de sola. A distância era demasiada para acertar com precisão no galho ou perto da cabra para a assustar. A pedra bateu entre os dois cornos, partindo-se em três pedaços.
A cabra ficou sem força nas patas traseiras, caindo para o lado, ficando a cambalear um pouco antes de seguir as outras ainda trôpega. Naquele dia, apenas, tinha a lição aprendida.
A Fraga do Castelo era um dos locais para pasto. O tio Zé tinha lá perto um trigal já devastado, mas que merecia a atenção da cabrada e do António.
Depois de sair do trigal, seguiu para a Fraga. Aquelas pedras deviam atraí-lo.
Enquanto as cabras se empanturravam, ia procurando pedras para as fazer voar Fraga abaixo. Por não serem redondas, a resistência é maior. Têm bicos e a aleatoriedade do movimento faz com que seja um belo espetáculo vê-las a bater nas outras e voar para o fundo do rio. As maiores são as mais apetecíveis, mas nem sempre estão à mão.
∴
Nesse dia, eu estava no rio, perto do poço do Belchior a pescar mais paciência que peixes. Ouvia-se alguns ruídos ao fundo em eco devido à encosta côncava.
Estava a pescar com a cana de bambu do avô Artur. Era rija como cornos e pouco sensível ao picar dos barbos mais miúdos. Não importava, pois a bóia de cortiça pouco aprumada, era sensível o suficiente para ir abaixo com o pousar de um moscardo.
Ouviu-se mais uma vez o ruído de pedras a rolar e o bater na água seguido de eco.
A bóia de cortiça tinha desaparecido e a ponteira dobrava, quase a partir, a cana de bambu estava a querer sair-me das mãos. Puxei e fui puxado, mas a luta não demorou muito. Com um esticão violento o peixe levou tudo atrás, anzol, bóia e chumbeira. Devia ser o maior lúcio do rio.
Ansioso, voltei a colocar linha, fiz o tenso, meti a chumbada com o destorcedor, peguei numa outra bóia, coloquei o morcão e lancei-a. Tinha de ajustar contas com aquele monstro. Mas só senti o silêncio mais profundo da água. Só o movimento da maré fazia mexer a bóia solitária.
Ali estive até quase não distinguir a bóia dos reflexos da água ao final do dia.
Derrotado, enrolei a linha e vim embora.
As cabras do tio Zé estavam a beber água junto ao poço.
∴
Já de noite, ouvi os gritos da minha tia.
O Osvaldo disse-me que encontraram o corpo do António perto do chorão grande, ao lado do Belchior. Eu tinha estado lá.
A chorar, disse-me que o seu corpo frágil não tinha ponta por onde se pegar. Era um farrapo onde não se distinguia a sua forma ou vontade.
As rochas aguçadas tinham feito o seu trabalho em retalhar o meu primo. O seu corpo foi a última pedra que ele lançou fraga abaixo.
∴
Enquanto o Osvaldo contava o sucedido, eu não conseguia pensar em mais nada a não ser naquele peixe enorme. “Aquele peixe tinha vivido muito, devia ser, pela força, uma besta corpulenta, mas de certeza que não morreria de velho, alguém o pescou noutro dia qualquer. De uma maneira ou de outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a minha marca, era meu.”
Ou talvez fosse o António, com aquele barulho seco que ouvi antes da puxada. Talvez tivesse sido o António a puxar-me a cana e com violência levou-me linha, chumbada, anzol, bóia e me queria com ele no fundo do rio, perto das pedras.
Ano year · 2019
Local location · Lagoa, trás-os-Montes. Portugal
A Fraga do Castelo representava o local mais proibido da aldeia. Ouvir falar da Fraga despertava ansiedade.
Para além de distante do centro da aldeia, representava perigos, penedos, poços, alturas e partes de histórias de lobos e javalis que por lá andavam.
Os adultos, a não ser pelo sentido pragmático, não se aventuravam por passeio para ajudar na curiosidade dos mais novos. Tinham ouvido as mesmas histórias quando garotos e algo se tinha vincado nas memórias de forma a reprimir qualquer visita.
“É onde os mouros andaram!”, diziam os mais velhos desdentados.
"Os mouros" é a forma simples e inocente de representar tempos mais antigos que eles próprios. A memória faz-se destas pequenas implicações e mitos. Dá-se carga negativa ao mouro e sem razão.
Diz-se que foram encontradas moedas e cerâmica. Há uma clara evidência de terras mexidas, mas o mato torna já difícil a leitura do espaço.
Em baixo fica o rio Sabor, o último rio selvagem. O local alto e claro seria de excelente qualidade de observação e atividades defensivas. É difícil perceber a escala do curso da água.
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As pedras cortadas em forma de navalha apontam o precipício. A vertigem é bem mais intensa que o deslumbramento da paisagem. Os passos têm de ser bem calculados. O vento, se está com demasiada força, atrasa ainda mais a passada.
Em baixo vê-se campos recentemente lavrados. A sul, o gato que é formado por oliveiras, já esteve mais definido.
Parece que as pedras estão ansiosas por se atirar ao fundo. Rebolam algum tempo, mas o voo é mais longo.
Há um certo fascínio pelo voo. Se nós não conseguimos, porque não haveríamos de ajudar outras coisas a voar?
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António era o querubim da tia Páscoa. Tinha pouco sentido escolar e, à falta de melhor, decidiu pedir a cabrada ao tio Zé. Eram 48 e todas elas de estômago farto.
O aspirante a pastor deu-lhe o jeito. Era já elogiado pela regra que impunha às teimosas cabras. Tinha caminhos certos e as cabras conheciam-nos.
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Ao contrário das ovelhas, as cabras têm uma resistência especial. Gostam de subir e descer fragas espetadas. Devem ter ainda os instintos antigos dos seus antepassados para desafiar a verticalidade do monte. Os cascos, como ganchos, engatam nas frinchas das pedras e permitem a locomoção rápida.
Não se percebe o seu gosto pelas silvas. Qual a crosta que protege a cabra dos afiados espinhos no corpo e na boca. Qual o processo complexo desenvolvido nos seus quatro depósitos que lhe permite, depois de triturada a mais dura das ervas, abrir o esfíncter e deleitar a terra com redondos presentes.
O tio Amâncio diz que “elas gostam de ir provando” e por isso são mais teimosas que as ovelhas. Quando vêem um possível petisco não se importam de sair do respectivo caminho e apanhar uma pedrada nos cornos. O tio Amâncio é especialista nas pedradas de pastor. Já cegou várias.
Lembro-me de andar com ele quando era miúdo. Uma cornuda, em duas patas, beliscava uns ramos de oliveira. O tio Amâncio, enquanto praguejava, lançou à pastor uma pedra xistosa em forma de sola. A distância era demasiada para acertar com precisão no galho ou perto da cabra para a assustar. A pedra bateu entre os dois cornos, partindo-se em três pedaços.
A cabra ficou sem força nas patas traseiras, caindo para o lado, ficando a cambalear um pouco antes de seguir as outras ainda trôpega. Naquele dia, apenas, tinha a lição aprendida.
A Fraga do Castelo era um dos locais para pasto. O tio Zé tinha lá perto um trigal já devastado, mas que merecia a atenção da cabrada e do António.
Depois de sair do trigal, seguiu para a Fraga. Aquelas pedras deviam atraí-lo.
Enquanto as cabras se empanturravam, ia procurando pedras para as fazer voar Fraga abaixo. Por não serem redondas, a resistência é maior. Têm bicos e a aleatoriedade do movimento faz com que seja um belo espetáculo vê-las a bater nas outras e voar para o fundo do rio. As maiores são as mais apetecíveis, mas nem sempre estão à mão.
∴
Nesse dia, eu estava no rio, perto do poço do Belchior a pescar mais paciência que peixes. Ouvia-se alguns ruídos ao fundo em eco devido à encosta côncava.
Estava a pescar com a cana de bambu do avô Artur. Era rija como cornos e pouco sensível ao picar dos barbos mais miúdos. Não importava, pois a bóia de cortiça pouco aprumada, era sensível o suficiente para ir abaixo com o pousar de um moscardo.
Ouviu-se mais uma vez o ruído de pedras a rolar e o bater na água seguido de eco.
A bóia de cortiça tinha desaparecido e a ponteira dobrava, quase a partir, a cana de bambu estava a querer sair-me das mãos. Puxei e fui puxado, mas a luta não demorou muito. Com um esticão violento o peixe levou tudo atrás, anzol, bóia e chumbeira. Devia ser o maior lúcio do rio.
Ansioso, voltei a colocar linha, fiz o tenso, meti a chumbada com o destorcedor, peguei numa outra bóia, coloquei o morcão e lancei-a. Tinha de ajustar contas com aquele monstro. Mas só senti o silêncio mais profundo da água. Só o movimento da maré fazia mexer a bóia solitária.
Ali estive até quase não distinguir a bóia dos reflexos da água ao final do dia.
Derrotado, enrolei a linha e vim embora.
As cabras do tio Zé estavam a beber água junto ao poço.
∴
Já de noite, ouvi os gritos da minha tia.
O Osvaldo disse-me que encontraram o corpo do António perto do chorão grande, ao lado do Belchior. Eu tinha estado lá.
A chorar, disse-me que o seu corpo frágil não tinha ponta por onde se pegar. Era um farrapo onde não se distinguia a sua forma ou vontade.
As rochas aguçadas tinham feito o seu trabalho em retalhar o meu primo. O seu corpo foi a última pedra que ele lançou fraga abaixo.
∴
Enquanto o Osvaldo contava o sucedido, eu não conseguia pensar em mais nada a não ser naquele peixe enorme. “Aquele peixe tinha vivido muito, devia ser, pela força, uma besta corpulenta, mas de certeza que não morreria de velho, alguém o pescou noutro dia qualquer. De uma maneira ou de outra, porém, com o meu anzol enganchado nas guelras, tinha a minha marca, era meu.”
Ou talvez fosse o António, com aquele barulho seco que ouvi antes da puxada. Talvez tivesse sido o António a puxar-me a cana e com violência levou-me linha, chumbada, anzol, bóia e me queria com ele no fundo do rio, perto das pedras.
Ano year · 2019
Local location · Lagoa, trás-os-Montes. Portugal